Os vestígios dos últimos dias do cárcere

O ‘Estado’ visitou a Casa de Detenção, desativada no domingo, antes que as celas e corredores fossem limpos, para examinar as marcas do cotidiano dos presos

 

Quando a porta de madeira maciça revestida de ferro se fecha, batendo contra o portal, faz um barulho surdo; seguido pelo ruído metálico do ferrolho encaixando-se na tranca embutida na parede. As portas das celas da Casa de Detenção eram trancadas às 16 horas, para serem reabertas às 8 da manhã seguinte, quando os detentos ganhavam os corredores e o pátio interno de cada pavilhão.

Depois da “tranca”, a noite ainda demorava a cair. Na cela 5.254-E, do Pavilhão 5, a luz da janela ilumina o versículo 1 do capítulo 27 dos Salmos, escrito com tinta preta sobre o metal cinzento: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei? O Senhor é a força da minha vida; de quem me recearei?”

Nessa cela de 4 metros de comprimento por 1,5 de largura viviam três detentos. As paredes estão pintadas de azul e o teto, de branco. O piso é de ladrilho cinza, com pedregulhos negros formando um mosaico. O pé-direito, de cerca de 3 metros, é cortado pelas duas camas suspensas no ar, presas nas paredes, a 2,2 metros de altura.

A cama de baixo está encostada na parede, sob a janela de 1 metro quadrado. Uma grade de ferro divide a janela em 25 quadrados menores. A cela dá para o lado externo do pavilhão. Olhando de pé no chão, a vista é a da fachada do Pavilhão 2, sobre o topo da muralha que separa os pavilhões, onde transitavam as sentinelas. Agachando-se, dá para ver um pedaço do céu.

Subindo a escada de madeira que dá acesso às duas camas de cima, vê-se a metade de baixo da muralha e um pedaço do chão de cimento do corredor externo. Como alternativa a essa paisagem realista, há um quadro pintado na parede debaixo da janela, do mesmo tamanho dela. A silhueta de um casal admira o mar, entre palmeiras e pássaros e uma montanha ao fundo.

Na cabeceira da cama, dois postais grudados na parede sugerem um cenário certamente familiar e provavelmente impregnado de recordações. Um deles mostra a Ponte Duarte Coelho, imponente sobre o Rio Capiberibe, no Recife. Atrás, o texto hesita entre o afetuoso e o formal: “Ao amigo, com carinho e respeito, lembrança de sua cidade natal. Obrigado por tudo. Abraços. Débora.” No outro, figura o prédio dos Correios do Recife. É a mesma remetente quem escreve: “Que Deus te abençoe sempre. Felicidades. Débora.” O endereço do destinatário é apenas um número de CEP, diferente em cada postal.

Sobre a cama, uma revista em quadrinhos de 36 páginas, dirigida aos presos, traz na capa um título bem-humorado: Paladinos de Onã apresentam – Bem na fita. O enredo erótico aproveita para mostrar como se coloca um preservativo. Na contracapa, há uma crônica do médico Dráuzio Varela, voluntário da Casa de Detenção, em que ele lembra o futebol na sua infância.

O banheiro é um pequeno retângulo com uma latrina no chão, cujo buraco é tampado por uma esfera de borracha. O chuveiro é um cano, em cuja ponta, em algumas celas, uma ducha e resistência são precariamente improvisadas. Uma torneira de cobre na parede completa as instalações.

No teto, há uma lâmpada de tungstênio de 60 watts, de cujo soquete partem vários fios, que alimentam as gambiarras elétricas. Entre elas, a bigorna: fogão improvisado em dois tijolos com fios incrustados formando uma resistência, para esquentar a comida. Embaixo, um armário guarda três canecas, três copos e três recipientes de plástico. E um vidro de molho inglês vazio.

No espaço exíguo da cela, há uma profusão de objetos de uso pessoal, vestígios de uma vida cotidiana deixados para trás por indiferença, pressa ou superstição: um par de sandálias Havaianas brancas; um maço de panfletos com mensagens religiosas, atado com um elástico preto; uma “pomada antirreumática” do Serviço de Farmácia do Departamento de Saúde do Sistema Penitenciário; uma calça de moletom de cor indefinível.

Numa das três prateleiras de madeira do armário de alvenaria, há livros didáticos de matemática, português e Organização Social e Política do Brasil (OSPB). Num caderno, a capa com a figura de um gato está coberta pela embalagem de um revólver Magnum – de brinquedo. Entre lições de português, matemática e história, algumas páginas contêm cartas não enviadas, ou rascunhos delas, apesar do capricho da caligrafia. Uma delas, datada de 30 de maio de 2001, começa assim:

“Saudades

Querido filho Angelo, eu espero que quando esta carta chegar em suas mãos encontre com bastante saúde você e seus irmãos. Filho, eu tenho esperado com paciência notícias de vocês, mas até agora não tinha recebido notícias suas. Filho, manda uma carta para mim. Filho, eu não agüento mais de tanta saudade. Escreva-me dizendo como estão seus irmãos e suas irmãs e a mãe, por favor, filho.”

Outra, de 23 de agosto – o autor trocou o ano, escrevendo 2000 e depois corrigindo para 2002 -, diz (exatamente com essa grafia e pontuação):

“Querida mamãe eu quero dizer-lhe que ti amo muito muito mesmo querida mamãe eu ti amo São Paulo vai dar tudo serto vai dar tudo serto não esquenta a cabeça.” 


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