Do dia 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a atual Constituição, até o dia 28 de fevereiro deste ano, o Brasil editou 1.787.248 normas – entre leis, decretos, portarias e outros, nos níveis federal, estadual e municipal.
São 41 normas por dia. O levantamento é do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), de Curitiba, que usou como base de dados 789 cidades, estabeleceu uma média e a projetou para o restante dos municípios, além de contar as normas federais e estaduais. De acordo com o banco de dados do Congresso Nacional, de 1946, ano da redemocratização pós-Estado Novo, até o último dia 3, foram editadas 14.546 leis ordinárias federais.
“Infeliz do país que precisa de tantas leis para se governar”, sentencia Ubiratan Mattos, presidente do Instituto Brasileiro do Consumidor. O simples número de normas que o País produz já torna humanamente impossível conhecer o seu teor. “É uma ficção jurídica dizer que não se pode alegar inocência por desconhecimento da lei”, afirma o jurista Miguel Reale, que coordenou a comissão elaboradora do novo Código Civil. “O mais grave é que não é de conhecimento nem dos que deveriam conhecê-la, como os governantes e os governados mais esclarecidos, incluindo os juízes e advogados.”
“Nem eu, como técnico da área, especialista, mestre, doutorando e professor não conheço todas as leis no campo penal”, afirma Luíz Flávio Borges D’Urso, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça.
Patacoadas — Além de serem muitas, as normas brasileiras tendem a descer a minúcias demais. A começar pela Constituição em vigor. Consta que ela ia ser a maior do mundo em número de artigos. Para evitar que entrasse no Guinness, alguém deu a idéia de dividir artigos em alíneas e incisos, resultando em “artigos enormes e num texto inteiramente desestruturado”, na opinião do tributarista Antonio Carlos Rodrigues do Amaral: “O texto da Constituição é risível. Começa com patacoadas, dizendo que os constituintes se reuniram ‘sob a proteção de Deus’, como se fossem seres supremos.”
“A lei tem que trazer as condições essenciais”, ensina o presidente do IBPT, Gilberto Luiz do Amaral. “Os detalhes cabem ao decreto que regulamenta a lei. Quando o Executivo vai regulamentar, também quer falar muito. É muito comum o decreto ser idêntico à lei.” Tudo isso tem um custo, em profissionais, livros e tempo, para acompanhar os humores da legislação.
“São características do legislador brasileiro escrever bastante e modificar as leis constantemente, muitas vezes contrariando as anteriores”, descreve o tributarista. “Há inúmeras leis tratando do mesmo assunto, levando à sua banalização”, completa Ubiratan Mattos. O país que vive num frenesi de produzir leis é também o país das leis que não pegam. Mesmo que inócuas, elas seguem sendo feitas.
A maior parte é bobagem. “O sistema legislativo brasileiro é usado para questões de importância menor, para os políticos agradarem a suas bases concedendo títulos, batizando ruas e criando datas comemorativas”, enumera Gilberto Luiz do Amaral, que estima que 70% das normas não tenham importância. Mas a politicagem também interfere em assuntos sérios. “Para agradar a determinada categoria, é comum o parlamentar encaixar um artigo no meio de uma lei, criando um privilégio”, afirma o tributarista.
Creolina — O criminalista Borges D’Urso cita um exemplo de distorção. Diante da proliferação de remédios falsificados, resolveu-se, em 1998, tornar essa prática “crime hediondo”. Durante a elaboração do projeto de lei, alguém querendo agradar a alguém incluiu nela os “saneantes”, que são os materiais de limpeza. A lei prevê pena de quatro a oito anos de cadeia. A pena mínima para homicídio é de seis anos. “Com isso, no Brasil, a creolina passou a valer mais do que a vida humana”, conclui o criminalista.
A ânsia de fazer leis e o seu descolamento da realidade têm a mesma explicação. “No Brasil, quando não se consegue resolver um problema social ou econômico, cria-se uma lei, transferindo-o para o Judiciário”, analisa Ubiratan Mattos, do escritório Pinheiro Neto Advogados. Exemplos: o Estatuto da Criança e do Adolescente, que lhes concede todos os direitos sociais de que elas deveriam desfrutar, ou o artigo da Constituição que estipula que a taxa de juros real não pode ultrapassar 12% ao ano.
Sem poderem introduzir as condições sociais e econômicas que levam uma e outra coisa a serem exeqüíveis, essas normas vão para a vala comum das leis que não pegaram. Se as condições de possibilidade estivessem dadas, não seria necessária uma lei para instituí-las. Se as condições não estão dadas, não será a lei que as criará. Assim, esse tipo de lei está condenado a ser ou redundante ou fantasioso. No entanto, é o que mais se encontra na pródiga legislação brasileira — da Constituição em vigor à mais humilde legislação municipal.
“Herdou-se do regime autoritário a noção de ordem de serviço dos militares, que julgavam que a lei era o máximo, quando o direito deve se ater ao mínimo, como ordenação da regra social que permite separar o que é meu do que é seu”, afirma Antonio Carlos Rodrigues do Amaral.
Essa mentalidade foi a essência dos planos de estabilização econômica que ambicionaram derrubar a inflação com uma canetada, segundo o tributarista. “O presidente José Sarney deve ter-se deliciado: ‘Nunca pensei que fosse tão fácil acabar com a inflação, baixando uma ordem de serviço que proibia os comerciantes de aumentarem os preços.’”
“O que deve ser o máximo é a moral e a ética, que se realizam no plano existencial”, diz Rodrigues do Amaral. “A complexidade da vida social traz a complexidade do ordenamento jurídico, mas não se pode criar leis para resolver tudo.”
Platão — “Seguimos a tradição do idealismo platônico, redigindo normas para dizer como deve ser o País, com uma legislação que busca o ideal”, observa o juiz Urbano Ruiz, do 1.º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. Já os anglo-saxões, com seu direito consuetudinário, fundado nos costumes, seguem a tradição aristotélica. “Não se preocupam com o ideal, com o que deve ser, mas com o que é, o real. É por isso que não têm tantas leis como nós.” Os brasileiros pretendem que as leis instaurem uma realidade; os ingleses preferem que a realidade instaure as leis.
O sociólogo inglês Herbert Spencer (1820-1903) alerta para o destino de quem teima em brigar com o real: “A fé cega no poder do legislador é um fetichismo, vestígio do passado. O tempo o arruinará.”