Os 10 mil foguetes que iluminaram o céu roubaram a atenção de 4 milhões de pessoas
RIO – O céu do Rio tingiu-se de vermelho, dourado, prateado, azul e verde à meia-noite de ontem, enquanto, embaixo, um mar de gente vestida de branco refletia o espetáculo extraordinário de luzes e cores. Na maior festa de réveillon do mundo e provavelmente uma das mais impressionantes da história, cerca de 4 milhões de pessoas juntaram-se ao longo da orla do Rio para testemunhar a passagem para o ano 2000.
Dez mil foguetes, acionados por computador, dominaram o céu e a atenção da multidão durante 18 minutos, criando o efeito fantástico de cachos que se abrem em poeira de luz e parecem cair sobre quem está no chão.
A multidão em Copacabana, epicentro da festa, só tirou os olhos do céu para voltar-se à esquerda, à 0h16, quando a tradicional cascata do Hotel Méridien pareceu reduzir o edifício a uma nuvem branca.
Em seguida, como para atrair de volta a atenção do público, os fogos de artifício ganharam intensidade ainda maior.
Terminada a queima de fogos, os gritos de admiração da multidão, que já se ouviam entre as explosões, ressoaram na Praia de Copacabana, onde havia, segundo a Polícia Militar, 2,5 milhões de pessoas. Ao fundo, as luzes de seis transatlânticos e dezenas de barcos, assim como os jatos iluminados de três navios, completavam o espetáculo.
Só então a multidão reencontrou o fôlego para abraçar, indiscriminadamente, parentes, amigos e desconhecidos.
Os shows de música nos seis palcos montados na orla – quatro em Copacabana, um em Ipanema e o outro na Barra da Tijuca – foram retomados depois dos fogos. Antes da meia-noite, cantaram, entre outros, Gal Costa, Beth Carvalho e Luís Melodia. Logo em seguida aos fogos, os alto-falantes entoaram Cidade Maravilhosa. A festa prosseguiu madrugada afora.
Os cálculos são de que 1 milhão de turistas vieram para a festa, dos quais 700 mil brasileiros e 300 mil estrangeiros.
Já no início da tarde de ontem, a multidão começou a acorrer ao magnífico e tórrido cenário da festa – as praias da orla marítima, sob temperatura de 35° durante a tarde e de 28° à meia-noite. As pessoas chegavam de todas as formas, especialmente em ônibus de excursão e a pé.
A Avenida Atlântica e as ruas que circundam a Praia de Copacabana foram interditadas, transformando a área num grande passeio público. As rodas de samba foram-se formando desde o fim da manhã, assim como as filas para comer e telefonar.
“Escolhemos o Rio porque disseram que seria a maior festa do mundo”, explicaram os alemães Winfried Möller, de Hamburgo, e Ines Autengrüber, de Munique. Eles vieram de avião, mas foram ver a passagem num dos transatlânticos ancorados na baía. O casal gastou 10 mil marcos (R$ 10 mil) nessa viagem. O Brasil, com exceção dos hotéis, pareceu barato aos alemães. “A cerveja aqui custa 1 marco, enquanto na Alemanha é 3 ou 4”, disse Möller.
Os preços nos quiosques das praias eram os mesmos de dias comuns: R$ 1,50 a água de coco e R$ 1,00 a cerveja, o refrigerante e a garrafa de água mineral. “Não adianta cobrar mais caro, porque os camelôs chegam e roubam a festa”, explicou Antônio José do Carmo, de um quiosque em Copacabana. “O movimento está o dobro do de um domingo de sol.”
Ontem foi um dia de declarações de amor ao Rio. “Este é o melhor lugar do mundo”, disse o comerciante Jorge de Souza Drummond, de 65 anos, morador de Copacabana. “Vida é aqui, não existe igual noutro lugar da Terra.”
Mas não eram só os cariocas que exaltavam o Rio. “Já passei réveillon em Nova York, Las Vegas e em dois cruzeiros, mas nada se compara ao Rio”, disse Nancy Gonçalves Bergamo, de 57 anos, “quatrocentona” de São Paulo.
“Sou carioca por adoção”, afirmou Sérgio Ferreira, de 65 anos, professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. “Para mim, o Rio é o carioca, aquele que toma chope de pé, bate-papo sem compromisso e dá risada das desgraças da vida.” Ferreira e a mulher, a psicóloga Clotilde Rossetti, de 63 anos, passaram o réveillon na cidade nos últimos três anos.
“Gostamos da passagem do ano no Rio porque tem um compartilhamento muito grande, participam de bebês até gente em cadeiras de rodas, num astral muito bom, e é gostoso começar o ano nesse espírito de confraternização”, disse Clotilde, também professora na USP de Ribeirão. “Nossa impressão do Rio não é essa violência de que se fala; nunca a vimos.”
O casal não fica até muito tarde. Conforme a madrugada avança e, com ela, o teor alcoólico, as brigas correm soltas na praia e nos bares. As rodas de samba, essa democrática celebração da amizade e da alegria de viver, degeneram facilmente em pancadarias entre os próprios camaradas de batuque.
Mas a mensagem sobretudo deste réveillon, temperada pelo simbolismo do ano 2000, teve forte conteúdo de paz e de misticismo. Não havia mais espaço nas pedras do canto do Leme para as oferendas a Iemanjá e a outras divindades. Exóticos banquetes foram depositados sobre as pedras e a areia, contendo improváveis miscelâneas de uvas passas, camarões e ovos cozidos, carne, legumes e frutas, canjicas e pipocas, acompanhados de quindins e brigadeiros e de garrafas de cerveja, sidra, vermutes e até uísque barato.
“Estamos agradecendo pelo ano que tivemos”, disse Maria do Socorro, enquanto fincava palmas de Santa Rita em torno do buraco que ela e seu marido, Sílvio Barbosa, cavaram na areia para acender velas. “Agradecemos primeiro a Deus e depois aos orixás”, emendou Barbosa.
“Somos católicos, mas temos uma fezinha”, disse a portuguesa Maria Veiga, de 69 anos, que levou flores para Iemanjá. Sua filha, Natividade, levou pratinhos de festa com balinhas e jujubas e copos descartáveis com refrigerante, para pedir a Cosme e Damião proteção para seus filhos gêmeos.
Mas não havia só sincréticas manifestações de católicos. A praticante de umbanda e quimbanda Elizabeth Maria da Conceição, de 62 anos, “médium de berço”, que recebe Mariazinha da Praia, Iemanjá por parte da avó e Oxum por parte da mãe, também trouxe sua oferenda: um imponente manjar.
Após 12 horas de viagem, um ônibus com um grupo de 30 umbandistas de Pará de Minas estacionou na orla. Logo ao chegar, Nilza Maria de Jesus entrou em transe, incorporando Iemanjá, enquanto a mãe-de-santo Nivalda Souza de Oliveira ofertava uma bacia de frutas tropicais, logo levadas pelas ondas do mar.
No outro extremo da orla – e do espectro religioso –, uma índia tupiguara realizava uma pajelança no mirante do Leblon, por “boa caça, bom ano e bons frutos”, e para os dois filhos que se estavam casando em sua tribo perto de Coirama, na Amazônia.
Jovenil Paulo dos Santos, de 39 anos, empapado de suor sob o sol implacável da tarde, percorria o calçadão de Copacabana, brandindo a Bíblia e gritando: “Quando completar mil anos, Satanás será solto de sua prisão!”
O réveillon do Rio é para todos. Mas, para cada um, tem um significado particular.