Depois de bater o recorde de assentamentos, o governo se concentrará na sua viabilidade econômica
Na virada do primeiro para o segundo mandato, o governo mudará o eixo da reforma agrária – da abordagem quantitativa para a qualitativa. É o que explica o ministro de Política Fundiária, Raul Jungmann, em entrevista exclusiva ao Estado.
Estado – Que balanço o senhor faz dos últimos quatro anos de reforma agrária?
Raul Jungmann – Nós ganhamos politicamente a disputa pela reforma agrária, na medida em que quebramos o recorde de famílias assentadas e de hectares desapropriados, e tivemos a maior mudança de legislação feita num período democrático, aí se incluindo o Imposto Territorial Rural (ITR), o rito sumário e o Banco da Terra. Agora, é chegado o momento de enfrentar o desafio da qualidade.
Estado – O modelo da desapropriação está falido?
Jungmann – Não. Sua eficácia é altamente decrescente no Sul e no Sudeste, onde o preço da desapropriação e sobretudo o custo das indenizações judiciais são praticamente proibitivos. Aí, é melhor trabalhar com o Banco da Terra, o leilão e o arrendamento. Entretanto, a desapropriação ainda permanece funcional no Norte, Centro-Oeste e mesmo em lugares do Nordeste, porque a terra é muitíssimo barata e a organização e a capacidade do latifundiário de ganhar no Judiciário são menores.
Estado – A introdução da lógica do mercado ocorrerá também na ponta da produção e comercialização, visando à auto-sustentabilidade dos assentados?
Jungmann – É nessa revolução que nós estamos apostando. Vencida a batalha no Parlamento de mudar a legislação, tirar o entulho latifundiário, e com uma queda da tensão e do conflito, como atesta a própria Comissão Pastoral da Terra (CPT), é preciso investir na qualidade, com pelo menos três grandes mudanças. A primeira é descentralizar a reforma agrária. Concentrada em Brasília, ela não possibilita a qualidade e a sustentabilidade, porque a distância, o custo da decisão e a burocracia prejudicam o assentamento. Os créditos muitas vezes não chegam, a decisão é cara ou errada e o assentamento fica desvinculado do município. A segunda grande mudança é quebrar as paredes que dividiam agricultura familiar e reforma agrária.
Reforma agrária é um departamento da agricultura. Tínhamos agricultores familiares que queriam ser assentados e assentados que não queriam ser agricultores familiares, que é o grande objetivo da reforma agrária. É preciso unificar esses dois. O terceiro grande desafio é quanto à premissa de mercado. Reforma agrária tem desde o início de ser entendida como um contrato entre o setor público e o setor privado, ainda que seja pobre, sem-terra. E substituir o assistencialismo, a dependência, a precariedade por uma relação contratual, limpa, em que as partes sabem o que vão ter, o que vão pagar e o que esperar.
Estado – A igualdade significará que o assentado vai ter de pagar mais pelos créditos recebidos e o pequeno agricultor vai ter melhores condições de crédito?
Jungmann – Não. Acontece que o subsídio hoje é muito elevado. O assentado só tem de pagar 50% do crédito, o que é um risco muito baixo. Isso tem feito com que uma parte do crédito seja utilizada para o consumo e não para a produção. É melhor colocar o subsídio claramente como doação, de R$ 1 mil, R$ 1,5 mil, o que for. Mas o crédito tem de ter risco, implica esforço e produtividade e tem de ser pago. Hoje ele não tem risco também para os bancos, que muitas vezes o vêem como um fardo. É preciso criar um fundo de aval, com o alavancamento de até R$ 3 bilhões. A rede privada vai querer disputar esses recursos. Os bancos terão margem de risco e os projetos terão de melhorar.
Estado – Na realidade do agribusiness e da globalização, que requer grande quantidade de investimento e tecnologia, qual o futuro da pequena propriedade?
Jungmann – Das dez cidades brasileiras que têm o melhor índice de desenvolvimento humano, aquelas que são ligadas ao meio rural têm forte agricultura familiar, que é um fator de melhor distribuição de riquezas. Nós temos 34 milhões de brasileiros no campo. Nossas cidades estão inchadas. Já não existem tantos empregos a serem criados nelas. A agricultura familiar é forte empregadora de mão-de-obra. Nela estão 84% dos estabelecimentos e entre 65% e 70% da mão-de-obra do campo.
Estado – O saldo é negativo na agricultura familiar: mais gente sai do campo do que o número de assentados.
Jungmann – O Brasil não vai permanecer com 22% da sua população no campo. Não precisa chegar aos 2% ou 3% dos Estados Unidos nem aos 6% da Europa. Mas vai perder. Só que temos perdido proporcionalmente menos gente no campo do que no passado, graças à reforma agrária. É preciso associar a reforma agrária com educação. Se o filho do agricultor ficar no campo, com educação, absorve tecnologia e fica mais produtivo, especializa-se, pega nichos de mercado. Se for para a cidade, tendo educação, vai encontrar um lugar no mercado de trabalho.
Estado – Não há um problema fundamental de competitividade no produto cultivado na pequena propriedade, e nesse sentido a reforma agrária não é um programa social que pode entrar em conflito com a lógica econômica?
Jungmann – O Brasil tem a enorme vantagem de ter terras suficientes para ter dois sistemas – o agribusiness e a agricultura familiar. Tem 850 milhões de hectares, dos quais só 400 milhões foram ocupados. Além disso, a sociedade vai ter de escolher que preço ela vai pagar. É melhor pagar um preço para que as pessoas fiquem no campo ou é melhor que venham para São Paulo?
Estado – O governo está fazendo autocrítica em relação ao programa, no sentido de ser muito caro e pouco eficiente?
Jungmann – A reforma agrária nos últimos 4 anos custou R$ 7 bilhões, dos quais 50% a 60% são papéis resgatáveis em até 20 anos. Mas é um valor expressivo. Estamos de acordo. Quando o problema veio para a agenda nacional, havia um grau de informação precária. Não havia quadros. A universidade não estava voltada para isso. O Estatuto da Terra nunca tinha sido posto em prática. O modelo tem de mudar. Foi levado ao limite e entrou em estresse. Só que, bem ou mal, conseguimos tirar 1,5 milhão de brasileiros da condição de excluídos. Boa parte deles se encontra na condição de subsistência. E uma parte menor está inserida no mercado. Mas, ao tirar esses brasileiros da miséria, o programa se paga.
Estado – A mudança do eixo das desapropriações para a compra de terras tem também como objetivo aliviar as pressões das invasões e despolitizar a reforma agrária?
Jungmann – Acho que seria um equívoco, um crime, tirar o poder dos movimentos sociais. Um país com as desigualdades do Brasil precisa de mais movimentos sociais, de pressão, de organização. Nada contra. A minha equação é outra. Eu preciso de mais eficácia.