Economia, política e cultura unem Ucrânia

Com exceção da Criméia, divisão não se sustenta na realidade econômica, política e cultural da Ucrânia

KIEV – Com exceção da Criméia, república autônoma de maioria russa, a narrativa segundo a qual a Ucrânia é um país condenado à divisão, com interesses e identidades irreconciliáveis entre o leste e sul pró-russos e o oeste e norte pró-europeu, não se sustenta objetivamente na realidade econômica, na dinâmica política nem na conformação cultural do país, revelam analistas ucranianos. A percepção de dois países com destinos divergentes é baseada em conceitos subjetivos – o que não é pouca coisa, no reino da política, mas pode não se sustentar, passado o trauma da queda do presidente Viktor Yanukovich, há uma semana, e a flexão de músculos das Forças Armadas russas na fronteira.

Em Donetsk, principal cidade do leste da Ucrânia, onde há uma importante produção de aço, carvão, trigo, açúcar de beterraba, óleo de girassol e batata, o repórter do Estado ouviu de manifestantes de etnia russa que uma eventual entrada do país na União Europeia (UE) aniquilaria a economia da região, por dificuldades de competitividade. Esses manifestantes, que na terça-feira somavam 50 pessoas na Praça Lênin, no centro de Donetsk, defendem uma união aduaneira com a Rússia, com a qual, acreditam eles, a economia ucraniana tem maior complementaridade.

O argumento é um eco do “complexo econômico nacional unificado”, que vigorou entre as 15 repúblicas da União Soviética, extinta em 1991. Passadas duas décadas, é natural que alguma interdependência ainda exista, principalmente em um país como a Ucrânia, cuja instabilidade política tem desencorajado investimentos na produção. Entretanto, um meticuloso estudo dos produtos regionais brutos (PRBs), feito pelo economista Oleksandr Kramar, mostra que não há correlação entre a posição geográfica de cada província ucraniana e sua dependência comercial da União Europeia ou da Rússia.

O levantamento mostra que os cinturões industriais do leste e do sul são muito mais dependentes das exportações do que do mercado interno. A participação do comércio exterior em suas economias varia de 48% a 91%, enquanto que nas regiões oeste e centro, o índice vai de 10% a 25%, o que mostra a relevância muito maior do mercado interno.

Entretanto, a UE é um destino mais importante do que a Rússia para os produtos exportados por praticamente todas as regiões, incluindo as do leste e do sul.

A própria região de Donetsk, por exemplo, um dos epicentros da resistência pró-russa, exporta 20,5% de seus produtos para a Rússia e 25,6% para a UE. A Criméia é uma das poucas regiões que exportam mais para a Rússia do que para a UE, mas a diferença é pequena: 25,8% a 21,5%, respectivamente. No oeste, a proximidade com a UE aumenta a fatia das exportações para o mercado europeu. Lviv, por exemplo, principal reduto pró-europeu do país, exporta 14% de seus produtos para a Rússia e 66,7% para a UE. Mas isso não é uma regra no oeste: a província de Khmelnitskiy, por exemplo, exporta 44,2% para a Rússia e 30,6% para a UE.

“Apesar da propaganda popular, um alto grau de dependência do mercado russo é evidente apenas em um pequeno número de províncias”, conclui o economista. “Das nove que exportam mais de 30% de sua produção para a Rússia, apenas duas são altamente dependentes das exportações e da produção industrial: Zaporizhzhia (sudeste) e Sumy (nordeste).” Em qualquer caso, Kramar argumenta que uma associação à UE não anula a possibilidade de uma união aduaneira com a Rússia.

A importância da UE levou grandes empresários a romper com Yanukovich e a apoiar financeiramente o movimento na Praça da Independência, depois que ele cedeu às pressões do presidente russo, Vladimir Putin, para suspender a associação ao bloco europeu.

No campo político, a tendência é muito mais de reacomodação de interesses do que de conflito. O hábito dos líderes locais de se adaptarem rapidamente às mudanças de comando no poder central, cultivado na antiga União Soviética, fala mais alto.

“Há uma longa tradição dos líderes e funcionários locais de imitar o governo central a cada mudança”, assegura a cientista política Inna Sovsun, do Centro de Pesquisas da Sociedade, em Kiev. “Não acho que o protesto será tão forte nem que haverá necessidade de impor à força a aceitação do novo governo”, aposta Inna, que é de Kharkiv, no leste, reduto de Yanukovich e pró-russo. “Basta o novo governo mostrar que vai proteger melhor do que o anterior os interesses dos moradores do leste e do sul, que também estão cansados da corrupção, do baixo poder aquisitivo e da falta de oportunidades.”

O repórter do Estado entrevistou dois veteranos da guerra do Afeganistão que comandavam a guarda popular criada pelos manifestantes na Praça da Independência – ambos de etnia russa. Entre os primeiros manifestantes mortos pela polícia, estavam um armênio, um bielo-russo e dois georgianos étnicos – todos cidadãos ucranianos.

Até mesmo na esfera da identidade cultural, as duas etnias têm muito mais traços a uni-los do que a separá-los. “É artificial a diferença de identidade entre russos e ucranianos”, analisa Justyna Kravchuk, que faz doutorado sobre cultura ucraniana na Kiev-Mohyla Akademia. “Ela foi mais importante no passado. Hoje em dia, é explorada pelos políticos para obter apoios locais”, diz Justyna, que é de Lviv, onde predomina a etnia ucraniana. “O ódio dos ucranianos do oeste em relação aos russos é um mito”, garante Justyna, de 22 anos. “Sou do oeste e as pessoas não ligam tanto para isso.”

Elementos importantes da cultura, como a língua e a religião, são muito próximos. O vocabulário ucraniano, principalmente o falado no oeste, sofre mais influência do polonês e do bielo-russo. Mas ambos os idiomas utilizam o alfabeto cirílico e a mesma gramática. Em geral as pessoas se entendem. É comum um falar russo, outro responder em ucraniano e o diálogo prosseguir assim, bilíngue. Os ortodoxos russos seguem o “patriarca de Moscou e de toda Rus” (nome ancestral) e os ucranianos, o “patriarca de Kiev e de toda Rus-Ucrânia”. Mesmo a Igreja Católica Grega, frequentada no oeste, segue os ritos e festas ortodoxos.

Tensões entre as duas etnias existem há muito tempo e continuarão existindo. Nada impede que haja conflitos localizados, como o da Criméia, de longe a situação mais aguda. Mas é provável que o problema esteja sendo superestimado. Uma divisão da Ucrânia não interessa aos ucranianos – sejam de que etnia forem. Tanto assim que uma das principais acusações ouvidas nas duas praças, a da Independência e a de Lênin, é a de que o outro lado está tentando dividir o país.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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