Os bombardeios franceses arrancaram os insurgentes islâmicos das cidades do norte do Mali, mas o conflito, em vez de acabar, entrou em nova fase, ainda mais perturbadora para a população rural e nômade do país: a guerra de guerrilha. Num dado revelador da instalabilidade e da sensação de insegurança, 270 mil malienses estão desalojados dentro do Mali e outros 170 mil, refugiados nos países vizinhos – somando 3% da população de 16 milhões de habitantes.
O maior grupo de refugiados – 77 mil – está no campo de Mbera, na Mauritânia, perto da fronteira com o Mali. A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) entrevistou em março 100 desses refugiados, e constatou que dois terços deles (65%) são tuaregues, a minoria que liderou o movimento separatista do norte.
Inicialmente de inspiração laica, esse movimento foi depois dominado pelos grupos islâmicos, que mudaram suas prioridades, da independência ou autonomia da região para a conversão de todo o Mali em uma teocracia. Foi essa mudança na agenda, e o avanço dos combatentes rumo ao sul, onde está a capital, Bamako, que desencadearam em janeiro a intervenção francesa.
O segundo maior grupo étnico dentre os refugiados são os árabes (26%), minoria diretamente associada ao fundamentalismo sunita que passou a dominar o movimento a partir de meados do ano passado, expulsando os separatistas laicos do Mali. Quase metade dos entrevistados (45%) disseram ter fugido por medo de represálias do Exército do Mali – que de fato chegou a promover chacinas de tuaregues – e da população local, que, com o avanço dos separatistas e dos extremistas, tornou-se hostil a essas minorias.
Já um quarto dos refugiados (24%) escapou de confrontos que ameaçavam diretamente suas vidas. Um quinto (20%) deixou o Mali depois do início dos bombardeios franceses, que também representaram uma ameaça para a população. A tomada de cidades pelos grupos islâmicos motivou a fuga de apenas 3% dos malienses ouvidos no campo de Mbera.
O Estado perguntou a Henry Gray, coordenador de Emergência do MSF, e que esteve no remoto campo, no meio do deserto, se há combatentes dentre os refugiados. “Não fazemos distinção entre civis e combatentes, mas não encontramos armas dentre os feridos que tratamos”, respondeu Gray. A segurança no campo é mantida pela polícia da Mauritânia.
O MSF, que mantém cinco médicos, sete enfermeiras e uma parteira no campo, realizou 85 mil consultas e 200 partos, e atendeu mil crianças com desnutrição grave. Dentre as causas de morte, 27% foram por diarreia, 24% por febre e malária e 16%, por infecções respiratórias. Essas infecções foram mais abundantes durante o inverno, mas, conforme se aproxima o verão no Hemisfério Norte, o calor de 50 graus representa novo desafio para a sobrevivência no campo, que não dispõe de eletricidade, embora não falte água, graças aos poços artesianos.
O MSF ergueu três hospitais de campanha – dois no campo de Mbera e um no posto de fronteira de Fassala -, que funcionam com geradores. O grupo tem também um centro cirúrgico em Bassikounou, a cidade mais próxima do campo, que fica a 300 km, mas não há exatamente uma estrada, e sim trilhas de areia no deserto. A viagem leva de 7 a 8 horas em veículos 4 x 4, e de 3 a 4 dias em caminhões, que trazem os mantimentos descarregados de aviões em Bassikounou, onde está a pista de pouso mais próxima do campo.
Os refugiados não se sentem encorajados a voltar, com as notícias de confrontos, que ouvem de pessoas que vão e vêm – incluindo homens da família, que cuidam dos rebanhos no Mali. Há duas semanas, o Chade – cujas tropas eram as mais capacitadas para atuar no deserto do norte do Mali – anunciou a retirada de seus 2 mil homens da força de imposição da paz formada pela França e pelos países da região. Restaram 4 mil soldados franceses e outros 4 mil africanos. A França pretende retirar também a maior parte de seus homens até o fim do ano, deixando mil soldados.
Foram soldados chadianos que mataram Abdelhamid Abou Zeid, líder da Al-Qaeda na região, e Mokhtar Belmokhtar, que comandou o sequestro em massa de funcionários em um complexo de gás na Argélia, perto da fronteira com o Mali. Os confrontos deixaram ao menos 13 chadianos mortos.
As tropas francesas e africanas deverão ser substituídas por capacetes azuis. O Conselho de Segurança da ONU aprovou na quinta-feira, por unanimidade, a criação de uma força de paz para o Mali. Com 12.600 soldados, que deverão chegar ao país até julho, será a terceira maior força de paz no mundo, depois da do Congo e de Darfur, no Sudão. Se serão capazes de oferecer segurança para os desalojados e refugiados voltarem para casa, no entanto, ainda é incerto.
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