Funcionário de banco de sangue de Mossul dá depoimento ao “Estado”
ERBIL – Com 3 milhões de habitantes, Mossul é a segunda maior cidade do Iraque, e de longe a mais importante ocupada pelo Estado Islâmico (EI), desde o dia 10 de junho. Nessa espécie de “capital do califado”, os radicais islâmicos têm colocado em prática a sua visão de como muçulmanos devem viver. Em depoimento ao Estado, pelo telefone, um morador de 32 anos, que trabalha no banco de sangue de um dos hospitais da cidade, descreve como é a vida sob o EI, e observa que os seus combatentes estão sofrendo pesadas baixas, a julgar pelo número de mortos trazidos do campo de batalha.
“Não saí de Mossul desde que os eventos começaram. Moro com minha mulher, meu filho, minha filha e meu irmão. Mudamos para um bairro mais tranquilo porque onde morávamos a polícia estava enfrentando o EI, e havia muitos tiroteios e disparos de canhões e artilharia.
O EI destruiu muitos santuários, por exemplo dos profetas Jonas, Sete (terceiro filho de Adão e Eva), Daniel, Yahya Abu Qassem e Abu al-Ola, todos de mesquitas sunitas. Destruíram também santuários xiitas em Tal Afar (cidade xiita próxima) e dos yazidis. Derrubaram a cruz da cúpula da catedral e lacraram as igrejas.
Impuseram niqab (somente os olhos das mulheres podem ficar visíveis), proibiram álcool, cigarro e narguilé. Qualquer um que vejam fumando, espancam. Batem nas mulheres na cabeça com uma vara, quando não estão de niqab. Um amigo meu lutou contra eles porque bateram na mulher dele, e o prenderam.
Um amigo meu ouviu falar de um leilão de mulheres em Al-Iyadhiya, uma vila a oeste de Mossul. Contam que durou uma hora e foi fechado, só entre os membros do EI. Eles são pessoas sem moral nem educação.
Mossul era uma cidade conservadora, e poucas lojas vendiam álcool. Sob o EI, a punição para quem vende é a morte. Ouvimos falar que vão banir picles, porque, quando o vinagre fermenta, vira álcool. Começaram a destruir nossos documentos de identidade iraquianos. Pegaram o de um amigo meu, deram-lhe um protocolo e disseram para ir a uma repartição buscar uma identidade do califado islâmico.
Eles abriram muitas frentes de batalha. Estão enfrentando os peshmergas (soldados curdos), o Exército iraquiano, unidades especiais de contraterrorismo e os aviões americanos. Trabalho perto do necrotério, e hoje (quinta-feira) os vi trazendo muitos mortos da luta contra os peshmergas e também de Tikrit (terra natal do ex-ditador Saddam Hussein, sob disputa entre o EI, tribos sunitas e o Exército iraquiano).
No bairro Sarej Khana, três semanas atrás, costumávamos ver cerca de 100 militantes do EI. Agora não vemos nem dois. Eles estão ocupados nas linhas de frente.
Todo mundo aqui os odeia. Ouço a mesma coisa de muitas pessoas que encontro.
O uniforme deles é kandahari (as batas e calças largas usadas no Afeganistão e no Paquistão), e estão sempre com fuzis por perto. Alguns são de Mossul, outros das vilas ao redor, árabes de outros países e não-árabes. Vi dois orientais.
Fala-se que o EI vai cortar a internet, porque acha que é pecado. Antes de adotar uma medida, eles espalham rumores, para ver a repercussão. Depois aplicam.
A Prefeitura baniu mulheres de trabalhar, alegando que misturá-las aos homens é pecado. Os homens que trabalhavam em unidades ginecológicas foram removidos para outros setores.
Estou trabalhando normalmente, apesar de o governo central ter ordenado que não trabalhássemos. Em comunicado oficial, o EI disse que explodiria a casa de quem não trabalhasse e tomaria todo seu dinheiro. Aplica-se a todas as repartições publicas. Todos os servidores públicos estão trabalhando sob a chefia de membros do EI.
O governador (da província de Nineveh, da qual Mossul é a capital) e o prefeito fugiram e foram substituídos por um “wali” (termo islâmico para “governante”) . Nomearam secretários para o Abastecimento de Água e para a Saúde. Demitiram os diretores de hospitais que não os apoiavam.
Não recebo meu salário há quatro meses. Por ordem do EI, os bancos reabriram na terça-feira e estão liberando parte dos depósitos das pessoas, só para as despesas do dia a dia. O EI impôs o pagamento compulsório de zakat (dízimo muçulmano). Descontam 2% de todos os depósitos nos bancos.
Falta material nos hospitais. Os pacientes que precisam de diálise, de antibióticos e de remédios cardíacos compram no mercado paralelo com seu dinheiro. Antes era subsidiado pelo governo. Os hospitais só estão fazendo cirurgias em casos de urgência.
Antes, um litro de gasolina custava 450 dinares iraquianos (US$ 0,37). Agora, custa 1.750 (US$ 1,46). Estamos totalmente sem eletricidade da rede pública há seis dias. Antes, havia durante meia hora por dia. Dependemos de geradores privados, que vendem a energia para as casas, durante 9 horas por dia. Usamos também geradores individuais para suprir a falta.
O óleo diesel vem da Síria (de regiões ocupadas pelo EI). Os donos de geradores compram no mercado informal, controlado pelo EI. No passado, o diesel vinha das refinarias estatais. Eu compro para o gerador de casa diesel da Síria por 750 dinares (US$ 0,62) o litro. A qualidade é muito ruim. Tenho de mandar o gerador para o conserto uma vez por mês.
Estou gastando o que poupei nos últimos anos e agora estou pedindo dinheiro emprestado para sobreviver. A situação está piorando. Tem água dia sim, dia não. Compramos no mercado ou pegamos no rio. Coleta de lixo, só duas vezes por semana. Antes, era diária. Os lixeiros, como todos, não recebem há quatro meses.
Os preços de tudo o que é proibido sobem. Por exemplo, o pacote com dez carteiras de cigarro de má qualidade, que custava antes 2 mil dinares (US1,67) agora custa 10 mil (US$ 8,33). Quando vou comprar cigarro, me sinto como um ladrão. Peço para o vendedor dividir os maços em diversas sacolas pretas, entro no carro depressa e vou embora.
Parte das lojas está fechada. Temos verduras, produzidas na zona rural de Rabeaa, onde é época de colheita. Enlatados, como lentilha, grão-de-bico e feijão tem pouco e são caros.
Só fiquei porque Mossul está toda cercada: do lado do Curdistão, há guerra entre peshmergas e o EI. Na direção de Bagdá, está bloqueado. Para a Síria não vale a pena ir, porque não há segurança.
Por todos os lugares, cristãos, yazidis e outras minorias fugiram – 1 milhão ao todo. Estamos cansados do EI. Eles nos destruíram. Aceitaríamos qualquer um que nos livrasse deles, até mesmo judeus.”
Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.