Nos últimos dez anos, os chineses se viram obrigados a votar a favor de seguidas sanções contra a Coreia na ONU, em vista dos testes nucleares
Há uma sensação de déjà-vu nas crises internacionais em geral, e nos espasmos da Coreia do Norte, em particular. O que há de velho e de novo agora? O anúncio — provavelmente falso — do teste bem-sucedido da bomba de hidrogênio pela DPRK (sigla em inglês para República Popular Democrática da Coreia) coincide com a forte desaceleração da economia da China, sem cujo apoio não existiria Coreia do Norte. Da correlação entre economia, política e segurança depende o desfecho desse episódio.
A estabilidade da ditadura de partido único na China depende do ritmo do crescimento econômico. Enquanto a grande maioria dos chineses confiar que sua vida pode melhorar, não haverá movimento pró-democracia de susbstância. O crescimento do PIB chinês desceu dos dois dígitos, na década passada — com exceção da crise de 2008 e 2009, quando mesmo assim se manteve acima de 9% —, e sustenta uma curva descendente, já abaixo de 7%. Pode parecer muito, mas o que importa, aqui, é a percepção do governo chinês, e ele tem dado sinais de preocupação. Ao permitir a desvalorização de sua moeda, o renminbi, por exemplo, contra as fortes pressões dos Estados Unidos e da Europa, cujos produtos perdem competitividade, a China demonstra que sua prioridade é conter a desaceleração, mesmo ao custo do esgarçamento de suas relações internacionais.
Ao longo da última década, a China tem procurado ajustar sua importância econômica a seu poderio militar, de modo a proteger seus ativos e interesses. Dona do maior exército do mundo e de um arsenal nuclear, não se pode dizer que a China era um gigante econômico e um anão militar. Mas ela era um gigante militar invertebrado. Seu esqueleto em formação é o chamado Colar de Pérolas, um arco de portos comerciais e bases navais que vai do Chifre da África até o Leste da Ásia, passando pelo Subcontinente Asiático — Paquistão, Sri Lanka e Bangladesh, cercando a Índia —, atravessando águas internacionais nos mares do Sul e do Leste da China, tangenciando arquipélagos em disputa com Japão, Austrália, Indonésia e Vietnã.
A desaceleração econômica não reduz a importância dessa projeção. Ao contrário. O eventual risco de enfraquecimento político do regime representa um incentivo para a flexão de músculos e o enaltecimento das ameaças externas — o mais manjado e mesmo assim eficaz artifício para arregimentar apoio da população e justificar o controle e a repressão. Historicamente, a DPRK foi usada, tanto pela antiga União Soviética quanto pela China, como meio de pressão e de contenção perante os EUA e seu principal aliado na região, o Japão. A diferença entre uma e outra é importante, aqui. A pressão é exercida com ações agressivas que geram tensões e mobilizam a atenção dos rivais. As mobilizações de tropas, os disparos de mísseis balísticos, os testes nucleares, a ruptura de acordos e as ameaças verbais são irritantes que pressionam os adversários a fazer concessões ou a recuar. A contenção impõe o custo alto de uma agressão — nesse caso, uma ação coordenada para unificar a península sob o domínio da Coreia do Sul.
Durante a guerra fria, o regime norte-coreano usufruiu de relativa estabilidade, graças à ajuda econômica da ex-União Soviética. Naquele período, a pressão foi calibrada de modo a atender os interesses soviéticos. A crise econômica e a dissolução da URSS, na virada da década de 90, lançaram a Coreia do Norte em uma fase de desabastecimento e instabilidade. Desde então, o regime tem oscilado entre a agressão e o apaziguamento, obedecendo menos aos interesses de seus parceiros do que às necessidades de sobrevivência política.
No interregno de quase democracia liberal experimentado pela Rússia entre 1991 e 1999, a DPRK dependeu exclusivamente da China, enquanto Moscou se aproximava de Seul. Incidentalmente, esse período coincide mais ou menos com o congelamento do programa nuclear norte-coreano, iniciado por cientistas soviéticos em 1956, suspenso em 1994 e retomado em 2002. A partir da ascensão de Vladimir Putin, na virada da década de 2000, a Rússia passou a manter uma relação ambivalente com a Península Coreana. É o que a China já fazia desde sua abertura comercial, em 1979. Assim como entre pessoas, a ambivalência representa poder na relação entre países até o ponto em que consegue estimular o alvo de sua manipulação a adotar posições desejadas pelo manipulador, para conquistar um prêmio buscado pelo manipulado, porém nunca alcançado. Essa técnica depende de fina calibragem, que aproxima a relação da ruptura, mas nunca permite que se chegue a ela, mantendo, assim, o manipulado no grau máximo da consecução dos objetivos do manipulador.
Há muito que a China perdeu o controle sobre a Coreia do Norte. Tanto assim que os chineses se viram obrigados a votar a favor de seguidas sanções contra a DPRK no Conselho de Segurança da ONU, em vista dos seguidos testes nucleares de 2006, 2009, 2013 e 2016. Por sinal, o abalo sísmico causado no dia 6 não foi maior que o de 2013, o que coloca em dúvida a alegação do regime de que alcançou a bomba de hidrogênio — cujo impacto é necessariamente muito maior que o de um artefato simples de urânio enriquecido. Em todo caso, a principal arma de Pyongyang tem sido a propaganda. Tanto assim que a Coreia do Sul retaliou ligando seus 11 alto-falantes na fronteira com mensagens espezinhando o regime. O anúncio da bomba H levou o secretário de Estado americano, John Kerry, a comunicar ao chanceler chinês, Wang Yi, que Pequim não podia mais seguir em seu “business as usual” com Pyongyang. Noutras palavras, a ambivalência chinesa não cola mais.
Essa crise sela o fim do papel da DPRK como fator de pressão. Há muito que Pequim sopesava a sua utilidade, já que os incontroláveis espasmos norte-coreanos serviram de pretexto para maior presença militar americana na região e medidas defensivas por parte do Japão e da Coreia do Sul. O dilema agora, para a China, está no esquema de contenção. Retirar o apoio ao regime equivaleria a permitir a unificação da península sob domínio sul-coreano. A China e a Rússia passariam a fazer fronteira com um aliado incondicional dos Estados Unidos. Ambos não estão prontos para isso. Mas, como costuma acontecer na História, tudo indica que os eventos atropelarão os planos dos políticos e, mais cedo do que tarde, essa parte da Ásia-Pacífico será forçada a um importante realinhamento, com consequências globais.
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