Por que o aeroporto e o metrô
Em 2004, a Al-Qaeda no Iraque (AQI) elaborou uma cartilha, na qual instruía seus militantes a atingir o que os especialistas chamam de “alvos brandos”. Em contraposição aos convencionais alvos militares, os alvos brandos são muito menos bem defendidos e portanto mais fáceis de atacar. São lugares que reúnem grande quantidade de civis e que, uma vez destruídos, causam grande impacto na economia, aí incluído o turismo, e também no dia a dia e no estilo de vida da população. Restaurantes, boates e estádios, como os que foram alvo dos ataques de 13 de novembro de 2015 em Paris, preenchem esses requisitos. Os meios de transporte, também.
Como já havia acontecido antes em Madri, Paris, Londres e Tóquio, por exemplo, o metrô é um alvo brando extremamente proveitoso, do ponto de vista do terrorismo, porque sua condição claustrofóbica provoca pânico entre os usuários. Sua luta para tentar chegar à superfície multiplica as mortes, por pisoteamento, ataques cardíacos, sufocamento e queimaduras. Os aeroportos também são um alvo clássico, por sua repercussão nacional e internacional. Aeroportos vulneráveis inibem o ingresso de turistas e homens de negócios, que trazem receitas para os países.
A doutrina propagada pela AQI, da qual o Estado Islâmico é herdeiro, estabelece como objetivo quebrar a espinha dorsal dos Estados inimigos atacando a sua economia. Essa é uma visão clássica do terrorismo, vinculada ao conceito da guerra assimétrica. Os grupos terroristas reconhecem que não podem vencer seus inimigos militarmente. Daí o foco na economia, que é um vetor de poder e de soberania tanto quanto a força armada.
O foco nos alvos brandos também tem por objetivo perturbar o estilo de vida das pessoas comuns, associado à prosperidade e ao desrespeito às normas de conduta moral que os jihadistas pretendem impor.
Essa doutrina representa um enorme desafio para os governos. Os alvos brandos são muito difíceis de defender. O fluxo fácil de usuários do transporte público é importante para o funcionamento da economia e o bem estar da população — sem falar nos turistas de lazer e de negócios. As medidas que terão de ser tomadas para proteger melhor os alvos brandos custarão caro, prejudicarão a atividade econômica e não serão suficientes para impedir novos ataques.
Por que Bruxelas
O principal alvo do recrutamento de militantes pelo Estado Islâmico no continente europeu são os jovens descendentes de imigrantes do Norte da África, ex-colônias da França. Depois de Paris, a segunda capital que mais concentra esses jovens francófonos é Bruxelas. Como demonstra a história de Salah Abdeslam, o 10.º e último executor dos atentados de Paris, preso no dia 18, há um intenso trânsito de membros dessa comunidade entre as capitais francesa e belga. Descendente de marroquinos, Abdeslam nasceu na Bélgica e obteve cidadania francesa.
A França tem tido um papel protagonista nos ataques a grupos jihadistas, sobretudo no Sahel, a zona intermediária entre o Deserto do Saara e a savana africana. Em janeiro de 2013, a França interveio militarmente no Mali para conter o avanço do Ansar Dine (Defensores da Fé) do norte do país em direção à capital, Bamako. Ao longo daquele ano, as forças francesas, apoiadas por tropas de membros da Comunidade Econômica de Estados Africanos Ocidentais, combateram as células jihadistas no norte do Mali, que se dispersaram e depois se reagruparam em países vizinhos. Hoje, todo o Sahel, assim como outras regiões ao norte e ao sul, tem forte presença das células jihadistas, que vêm aderindo ou aliando-se ao Estado Islâmico. A África é uma frente prioritária na expansão do grupo.
A Bélgica em si não tem um papel relevante no combate ao jihadismo. Mas Bruxelas é a sede da União Europeia, e o bloco, assim como seus principais integrantes — Alemanha, Inglaterra e França — tem se engajado na luta contra o Estado Islâmico e seus aliados. A estação de metrô atacada, Maelbeek, no centro de Bruxelas, é a que dá acesso ao complexo da União Europeia.
O principal objetivo do terrorismo é elevar ao máximo o impacto de suas ações. A sede da União Europeia é uma escolha natural. A segunda condição necessária para a atuação terrorista é a possibilidade de mobilização de militantes. A periferia de Bruxelas, assim como a de Paris e de Marselha, no sul da França, oferece um grande contingente de jovens descendentes de árabes e de muçulmanos, que não pertencem aos países de seus pais ou avós e também não se sentem como pertencentes ao lugar onde vivem, por razões culturais e econômicas. O Estado Islâmico oferece a esses jovens a oportunidade de recuperar a sua auto-estima, tornando-se importantes e famosos. Ainda que isso lhe custe a vida “terrena”, parece-lhes compensador, por três motivos: essa vida nãm tem sido prazeirosa, e há os prêmios da ressignificação dela e da conquista do paraíso eterno, para o qual levam, como mártires, outros 16 parentes, quando morrerem. É um desfecho glorioso, para muitos desses jovens. O Estado Islâmico só não tem recrutado mais jovens pelas dificuldades logísticas inerentes, não por falta de apelo.
E os Estados Unidos?
Os Estados Unidos continuam um alvo prioritário do Estado Islâmico. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, no entanto, as forças de segurança americanas adotaram medidas que tornaram a relação custo-benefício de agir nos EUA muito desfavorável. Os jihadistas continuam tentando, mas evitam investir todos os seus recursos nos EUA, cuja proteção é mais fácil do que os países europes. Os Estados Unidos têm apenas duas fronteiras: ao sul, com o México, e ao norte com o Canadá. A França faz fronteira com a Bélgica, Luxemburgo, Alemanha, Suíça, Itália e Espanha. A Bélgica, com a França, Alemanha, Luxemburgo e Holanda. Além disso, esses países pertencem à Área de Schengen, que prevê a livre passagem de pessoas pelas fronteiras. Esse tratado provavelmente terá de ser revisto.
Por que atacar
O Estado Islâmico se lançou como grupo guerrilheiro, em sua campanha para criar um califado por sobre as fronteiras nacionais dos países muçulmanos. Tem perdido sua capacidade militar, com os bombardeios liderados pelos Estados Unidos na Síria e no Iraque, e com as hostilidades, no terreno, dos guerrilheiros curdos, apoiados pela Rússia, e do Hezbollah e de outras milícias xiitas patrocinadas pelo Irã, com a missão de proteger o regime de Bashar Assad.Quando um grupo armado perde sua capacidade militar, ele recorre ao terrorismo. O Estado Islâmico está em franca expansão, em um arco que se estende da Indonésia, a maior população muçulmana do mundo, no Sudeste Asiático, até a Tunísia, no Norte da África, e do Oriente Médio até a Europa Ocidental. Ao ampliar sua presença, o grupo aumenta também seu espectro de apoio, atraindo para si agendas nacionais diversas, de grupos locais que passam a integrar sua franquia. Exemplo disso é o poderoso Boko Haram, no norte da Nigéria, que disputa com o Estado o controle sobre as riquezas provenientes da extração do petróleo, do qual o país é o maior produtor africano e sexto maior do mundo.
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