Caminhada percorre o mosaico infinito de mazelas que afligem a humanidade
PORTO ALEGRE – São oito da noite e o sol ainda insiste em brilhar sobre o Guaíba. Em direção ao rio, 60 mil pessoas, segundo a Brigada Militar, descem a Avenida Borges de Medeiros, no centro de Porto Alegre. Caminhar no sentido contrário, lendo as faixas, ouvindo as palavras de ordem, identificando as línguas e as cores das bandeiras, é percorrer o mosaico infinito de mazelas que afligem a humanidade – e de causas que a animam.
“Um outro mundo é possível. Esperanto, a língua internacional, faz a sua parte”, anuncia um cartaz em português. Do seu lado, um mastro com a bandeira da Venezuela sustenta também uma foto em preto e branco do guerrilheiro Ernesto Che Guevara, ídolo da juventude do Fórum Social Mundial.
Mais adiante, o sindicalista austríaco Hermann Dworczak carrega uma das estacas de uma faixa da Central Sindical Austríaca, com os dizeres: “Lutar juntos pela justiça social!” Dworczak, sociólogo, reconhece que as realidades da Europa e da América Latina são bem diferentes. O que os poderia unir? “Todos somos contra o neoliberalismo.” Um bloco de brasileiros animados entoa, em ritmo de marchinha: “Um outro mundo eu quero sim, sem a Alca e o FMI.”
Pausa para queimar uma bandeira americana. Na calçada sob os imponentes arcos da avenida, Ana Santana, de 42 anos, funcionária pública federal, apóia: “Queima, queima, queima.” Por que ela não gosta dos EUA? “Porque eles sufocam demais a gente, com impostos, exploração, com a dívida que temos com eles, e porque sou brasileira.”
Uma mulher passa silenciosamente com uma menina de quatro anos no colo. A mãe está toda tingida de verde; a filha, de amarelo.
Mais na frente, o sindicalista Gordon Barris, de Barbados, caminha, solitário, com um cartaz que diz, em inglês: “O poder é certo? Os EUA destroem o civil.”
Do outro lado da avenida, um pequeno grupo de sindicalistas de Fortaleza canta animadamente, depois de enfrentar uma viagem de 84 horas de ônibus da capital cearense até aqui. “A Alca não traz nenhum benefício para a classe trabalhadora”, analisa Francisco Roberto, de 34 anos, diretor-financeiro do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil do Ceará. “As realidades (dos trabalhadores de outros países) são diferentes, mas o capitalismo é mundial”, diz Ana Cléa Saraiva, também do Ceará.
No carro de som da manifestação, foram afixados cartazes de uma organização de Bagdá, pedindo, em inglês: “Parem a guerra da América contra o Iraque.” O orador anuncia que a marcha é contra “a exploração americana, o terrorismo, a guerra e a Alca, e pela soberania, autodeterminação, socialismo e democracia”. Na sua visão, “já começamos a dar um passo importante rumo ao socialismo: elegemos um metalúrgico”.
A atmosfera se desanuvia com a passagem de um grande dragão de pano, todo colorido, com o chapéu do Tio Sam. Uma das seis pessoas na cauda do dragão é a professora estadual aposentada Glasfira Monroe, de Alvorada, interior do Rio Grande do Sul. “O projeto neoliberal é um monstro”, compara Glasfira.
Os tambores da bateria juvenil da escola de samba Acadêmicos da Orgia, de Porto Alegre, alegram a marcha. Um grupo de jovens passa ao lado, politizando o samba: “Venezuela – onde já se viu? Vai dar golpe na p.q.p.” À frente de um grupo de militantes do Movimento Negro Unificado, vem um bloco de capoeiristas da escola Acanne.
Mestre René Bittencourt, de Salvador, explica por que trouxe seus discípulos: “Viemos colocar nossa posição em favor da reparação imediata de tudo que se deve à comunidade negra, por tudo o que o negro fez pelo País e não teve nada em troca.”
Sobre a ilha da avenida, uma figura chama a atenção de todos que passam. Chapéu de cangaceiro, sobre a peruca vermelha e miçangas coloridas, vestido marrom e sandália Melissa da mesma cor, com meias pretas, Marcos França, de 30 anos, exibe um pênis de plástico protegido por uma camisinha. “Minha causa é a prevenção da aids”, explica Marcos, do Grupo de Trabalho e Prevenção Positiva (GTP+), do Recife.
Passam os palestinos, os sindicalistas japoneses, o pessoal do Greenpeace, os anarquistas e os pacifistas israelenses – liderados pelo rabino Henry Sobel. Fechando a marcha, vêm os Artistas em Aliança, com uma mensagem singela: “Pelo reencantamento do mundo.”