Simplicidade é a maior virtude e a maior fragilidade

Despojamento de Lula lhe proporcionou instantes de grande empatia, mas franqueza tem também os seus riscos

PRETÓRIA, África do Sul – Foram sete dias de intensa exposição. No seu périplo por cinco países africanos, Luiz Inácio Lula da Silva pôs à prova suas qualidades de estadista. No esforço, transpareceu a maior virtude de Lula, que é também sua maior fragilidade: a simplicidade e a franqueza. O despojamento de Lula lhe proporcionou instantes de enorme carisma e empatia com seus interlocutores. Noutros momentos, deixou transparecer ingenuidade intelectual e imprudência.

No Brasil, é provável que essa viagem de Lula seja lembrada no futuro pela incrível gafe cometida pelo presidente na Namíbia. Não foi a única. Na Assembléia Nacional de Angola, na terça-feira, Lula comentara que, “durante décadas”, os angolanos “ensinaram o mundo a fazer guerra”, e pediu que “ensinem o mundo agora a fazer a paz”. Nos dois casos, falava de improviso.

Mas foi noutro improviso que Lula viveu o momento mais feliz de sua viagem. Numa conferência sobre políticas sociais a cerca de 300 intelectuais, executivos e políticos, na quarta-feira, em Maputo, Lula cativou a audiência com um relato vívido das dificuldades que enfrentou ao longo de sua vida e procurando motivar os moçambicanos a vencer os obstáculos.

“Eu tenho um problema que, se começo a falar de improviso, não paro, eu me emociono”, confessou Lula, inteiramente à vontade com a audiência lusófona. “Se eu for contar minha vida de miséria, vocês vão chorar e não quero isso.” Lula recorreu ao improviso fugindo de um discurso preparado pela Secretaria-Geral da Presidência, pontuado por frases como “os anos 90 foram a década do desespero”, “panacéia mercantilista”, “trata-se de refundar os alicerces”, etc. A cada vez que tropeçava nessas formulações, Lula abandonava o texto e voltava a improvisar.

Do ponto de vista dos propósitos da visita, o mais provável é que os deslizes não tenham maiores conseqüências, que os interesses pela assistência brasileira e pelo intercâmbio comercial falem mais alto do que a falta de sutileza do presidente. Nos cinco países que visitou, Lula veio oferecer mais que pedir.

A Agência Nacional do Petróleo ajudará São Tomé e Príncipe a organizar a exploração de seu petróleo. As linhas de crédito para investimentos brasileiros em Angola serão ampliadas e o mercado do Brasil será aberto para os produtos angolanos. O Ministério da Saúde doou para Moçambique medicamentos para a aids e assiste o país na montagem de uma fábrica de remédios. Os oficiais da Marinha da Namíbia são treinados pela Marinha brasileira, que doou uma corveta ao país. Com a África do Sul, o Brasil constrói uma sólida parceria, materializada no Grupo dos Três (G-3), que inclui a Índia.

Mesmo assim, a liberdade poética de um presidente contém riscos. “Isso poderia causar problemas muito grandes”, disse ao Estado uma assessora do governo sul-africano, ao saber do que Lula tinha dito na Namíbia. “As pessoas podem dizer: ‘Olha, se é isso que você pensa sobre os negros, é melhor você ficar lá no Brasil.'”

As condições em torno de Lula, no cenário internacional, são excepcionalmente favoráveis. Sua imagem de homem de origem humilde que conseguiu vencer na vida captura a imaginação de líderes tão diferentes quanto George W. Bush e Fidel Castro. No caso da África de língua portuguesa, a simpatia por Lula vem embalada nas novelas da Globo, veiculadas pelas TVs locais, além da mística que envolve universalmente a música e o futebol brasileiros.

Na ilha de São Tomé, onde muito poucos chefes de Estado e de governo fizeram escala até hoje, e onde a eleição de Lula foi tão festejada quanto o pentacampeonato do Brasil na Copa do Mundo, Lula foi recebido por centenas de pessoas no aeroporto e nas ruas por onde passou, numa cena rara hoje em dia.

Em Angola, o presidente José Eduardo dos Santos saudou Lula como “porta-voz das pessoas desfavorecidas”. O presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, foi receber Lula no aeroporto, e o acompanhou em todos os seus compromissos, levando-o a agradecer diversas vezes pelo “carinho” dedicado a ele e a sua delegação.

Santos, Chissano, o namibiano Sam Nujoma e o sul-africano Thabo Mbeki são todos ex-líderes de movimentos de libertação, de orientação marxista, sentindo forte identificação com o passado de dirigente sindical e popular de Lula.

“A viagem deu materialidade à opção pela África, menos pelos acordos assinados, que por si só são importantes, mas porque abre outro tipo de relacionamento”, resume Marco Aurélio Garcia, assessor especial do presidente para Relações Exteriores, e um dos idealizadores dessa aproximação. Nela, o Brasil começou a pôr em prática uma política tradicionalmente empregada pelos países ricos, baseada numa mescla de filantropia e lucro. Como disse o chanceler Celso Amorim, ainda no início da viagem: “Cooperação combina com negócios.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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