Angela Merkel pretendia terminar o ano recuperando a iniciativa. No congresso anual da União Democrata-Cristã (CDU), a chanceler alemã lançou no dia 6 sua quarta candidatura consecutiva para as eleições gerais do segundo semestre do ano que vem com uma guinada à direita, defendendo a proibição do véu que cobre todo o rosto das mulheres muçulmanas, para fazer frente ao crescimento do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD). Mas o ano não havia acabado para ela.
O pesadelo de natal de Merkel
Nem os marqueteiros da AfD conseguiriam forjar uma história mais destrutiva para Merkel que a do autor do atentado de segunda-feira em Berlim. O tunisiano de 24 anos chegou à Alemanha na onda dos 890 mil refugiados que entraram no país no ano passado, graças à política de “portas abertas” da chanceler. E escapou das autoridades, apesar das vastas evidências de sua ligação com o terrorismo islâmico.
No maior atentado desde a reunificação das Alemanhas em 1990, Anis Amri sequestrou uma carreta Scania, neutralizou o motorista polonês a facadas e tiros e jogou o caminhão carregado de aço, vindo da Itália para uma fábrica da Thyssen Krupp, contra os visitantes de um bazar de Natal em Berlim, matando 12 pessoas e ferindo 48. Embora Amri tenha deixado sua carteira cair no chão do veículo, a polícia deteve um paquistanês que estava por perto e cujo rosto batia com a descrição do suspeito, enquanto Amri desaparecia na noite de Berlim.
Entretanto, o jovem tunisiano, sobre cuja cabeça paira agora um prêmio de 100 mil euros, está longe de ser um desconhecido das autoridades alemãs. Depois de entrar no Estado de Renânia do Norte-Vestfália em julho de 2015, ele viajou por várias cidades, até se fixar em Berlim, a partir de fevereiro deste ano. Solicitou asilo em abril, mas foi negado. Nesse período, a polícia alemã já o estava investigando, por suas ligações com o clérigo salafista (radical islâmico) iraquiano Ahmad Abdulaziz Abdullah, de 32 anos, conhecido como Abu Wala, ou “o homem sem rosto”, por gravar suas pregações de costas para a câmera.
Abu Wala acabou preso no dia 8 de novembro, por apoiar abertamente o Estado Islâmico, doutrinar e recrutar candidatos a atentados terroristas. Um investigador disse à CNN que Amri era particularmente próximo de um integrante da rede de Abu Wala, chamado Boban Simeonovic. De acordo com a rede de TV americana, que teve acesso ao inquérito, Amri é citado nominalmente várias vezes em suas 345 páginas. Nele, um informante da polícia atesta que “Anis falou várias vezes em cometer ataques”. Simeonovic e outro membro da rede “estavam em favor disso e lhe deram um esconderijo”, contou o informante. No final de 2015 e início de 2016, Simeonovic acionou seus contatos numa mesquita em Hildesheim, no norte da Alemanha, para ajudar Amri a sair do país. Simeonovic dizia a seus seguidores que a Alemanha estava em “estado de guerra”, e ele e Abu Walaa consideravam os ataques justificados. “O único tema quando entrei nesses círculos era como entrar na jihad armada do Estado Islâmico e como levá-la para a Alemanha”, contou o informante. Os participantes da rede discutiram um plano de jogar um caminhão cheio de gasolina contra uma multidão.
No dia seguinte ao atentado, o Estado Islâmico assumiu a responsabilidade. De acordo com a agência de notícias do grupo, um de seus “soldados” executou o ataque “respondendo a convocações para alvejar cidadãos dos países da coalizão”, que participam dos bombardeios contra posições do EI na Síria e no Iraque.
A pedido de Merkel, em dezembro do ano passado, três semanas depois dos atentado de Paris, o Parlamento alemão aprovou a participação do país na coalizão. Foi autorizado o envio de 1.200 militares para funções de apoio, e não de combate, assim como seis aviões Tornado de reconhecimento, aeronaves de reabastecimento no ar e uma fragata, para dar cobertura ao porta-aviões francês Charles de Gaulle no Mediterrâneo. É o maior emprego de forças alemãs desde que o governo de Gerhard Schröder enviou tropas para o Afeganistão em 2001.
A polícia alemã apurou ainda que Amri estava tentando adquirir uma arma. Ele usou seis nomes diferentes e foi detido em agosto em Friedrichshafen, no sul do país, por portar documentos falsos. O tunisiano foi incluído na lista dos “Gefährder”, ou perigosos, da qual fazem parte 549 radicais islâmicos, nem todos vivendo atualmente na Alemanha, segundo um funcionário do Ministério do Interior informou ao jornal The New York Times.
As autoridades decidiram deportá-lo, mas isso não foi possível, porque ele não tinha passaporte e a Tunísia não o reconheceu como cidadão. O jovem foi então solto por um juiz. Nem ele deve ter acreditado em sua sorte.
O que foi relatado até aqui é a informação apurada pela própria polícia alemã. Além disso, se tivessem consultado os Estados Unidos, por exemplo, principal aliado militar e de inteligência da Alemanha, as autoridades alemãs teriam descoberto que Amri estava proibido de entrar lá. Isso porque a inteligência americana havia detectado que Amri se comunicou ao menos uma vez com uma conta usada pelo Estado Islâmico no Telegram Messenger, o aplicativo ao qual os brasileiros recorrem quando algum juiz decide derrubar o Whatsapp por não obedecer suas ordens de entregar informações sobre investigados. Além disso, os americanos viram que Amri havia feito pesquisas na internet sobre como construir explosivos.
Se quisessem, os alemães poderiam completar a ficha do jovem de 24 anos consultando outro parceiro próximo, a Itália. Amri entrou na Alemanha depois de ter passado quatro anos, de 2011 a 2015, em uma cadeia na ilha de Lampedusa, por envolvimento no incêndio de uma escola. Ele chegou à Itália em fevereiro de 2011, sem documentos. Embora já tivesse então 18 anos, afirmou que era menor de idade. As autoridades italianas também tentaram deportá-lo, mas, adivinhe: a Tunísia não o reconheceu como cidadão, e ele foi liberado. “Ele não era suspeito de terrorismo, era considerado um pequeno criminoso”, justificou Mario Viola, porta-voz da polícia italiana, à CNN.
O interessante é que em seu país Amri também era procurado. Ele foi condenado, em ausência, a cinco anos de prisão, por assalto à mão armada. Mas a Tunísia ou não estava muito interessada em tê-lo de volta ou não o reconheceu pelos nomes que ele apresentou. Seu pai disse à rádio tunisiana Mosaïque FM que ele deixou a Tunísia há sete anos, depois de abandonar a escola, e que não o viu desde então, mas que ele mantinha contato com os três irmãos.
FOGO AMIGO
A complacência das autoridades alemãs foi condenada até mesmo de dentro da CDU de Merkel. O deputado Stephan Mayer, porta-voz do partido para temas de segurança interna, qualificou de “ultrajante” o fato de o autor do atentado ter escapado da deportação há meses, mesmo se sabendo que era “potencialmente perigoso”.
A AfD, claro, está nadando de braçada. Marcus Pretzell, deputado do partido no Parlamento Europeu, tuitou: “Quando o Estado de Direito alemão revidará? Quando essa maldita hipocrisia finalmente vai parar? Esses são os mortos de Merkel!”
A chanceler foi colocada de volta na defensiva: “Sei que seria especialmente duro para todos nós suportarmos se for confirmado que a pessoa que cometeu esse ato buscou proteção e asilo”, admitiu Merkel. Não tenha dúvida.
Ah, a Tunísia emitiu o passaporte de Amri na quarta-feira — depois que ele se tornou o homem mais procurado da Europa.
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