Lourival Sant’Anna
Quando o bombardeio começa, as pessoas comuns fogem. Menos os capacetes brancos. Que também são pessoas comuns, mas com um treinamento e uma missão especial: salvar vidas na Síria. Eles correm em direção à fumaça e aos escombros. Antes, corriam imediatamente. Agora, que se tornaram alvo preferencial dos aviões sírios e russos, são obrigados a esperar um pouco: perceberam que os bombardeiros dão uma volta e atacam novamente, especificamente para atingi-los, sabendo que eles virão. Afinal, esses voluntários civis deixaram de ser apenas equipes de resgate: com suas câmeras GoPro atadas aos capacetes, eles filmam suas missões em vídeos que depois viralizam com hashtags como #ThisIsWhyWeRevolted (“é por isso que nos revoltamos”). Somados a um épico documentário de 40 minutos sobre o grupo que faz imenso sucesso na Netflix, esses vídeos cotidianos se tornaram o testemunho da carnificina promovida pela ditadura de Bashar Assad contra seu próprio povo.
Assim como os combatentes civis (há também os militares desertores) do Exército Sírio Livre (ESL), os capacetes azuis são pessoas como você e eu, que tinham uma profissão, um comércio e uma terra ou estudavam, até que a Primavera Árabe chegou à Síria. O que começou como manifestações pacíficas em favor da democracia, em 2011, degenerou numa guerra civil, por causa da repressão implacável do regime. Não era esse o plano, mas muitos sírios sentiram que era um caminho sem volta. A questão se tornou mais complexa, com a intromissão da Arábia Saudita e do Catar, que passaram a financiar grupos extremistas islâmicos, com apoio logístico da Turquia. Isso, combinado com a campanha de terra arrasada e bombardeio de saturação do regime, elevou o nível de destruição e desespero a um tal patamar, que uma parte dos combatentes decidiu em março de 2013 deixar as armas e dedicar-se a salvar a população. Em outubro de 2014, eles fundaram a Defesa Civil Síria.
Os capacetes brancos receberam ajuda financeira dos Estados Unidos, Reino Unido e Japão, e treinamento na Turquia da organização não-governamental Akut e da empresa de consultoria Analysis, Research and Knowledge (ARK). Hoje, são 2.900 voluntários. Já morreram 141 capacetes brancos, muitos deles atingidos por aviões que esperaram sua chegada, depois de um bombardeio, com o propósito visível de atacá-los, um pouco como os terroristas que detonam numa segunda bomba para atingir os policiais e as equipes de resgate. Em contrapartida, o grupo afirma ter salvado mais de 62 mil sírios. É um número significativo, diante dos 400 mil mortos de 2011 para cá, em uma população de 22 milhões. Além de atividades de bombeiros, como resgates em escombros e primeiros socorros, e de policiais, como desarmar explosivos não detonados, os voluntários também se dedicam a restaurar o fornecimento de eletricidade e de água. Assim como o ESL e o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, rede de 300 ativistas que catalogam com rigor os mortos e feridos do conflito, os capacetes brancos são mais uma demonstração da incrível capacidade de organização e mobilização da população, e do seu desejo de construir um país a partir da cidadania. Por representar um embrião de um Estado alternativo ao regime, acabaram se tornando uma ameaça para o regime, que tenta destruí-los a todo custo.
No dia 22 de setembro, os capacetes brancos receberam o prêmio Right Livelihood Award, de uma fundação em Estocolmo (eles eram cogitados também para o Prêmio Nobel da Paz, que no entanto foi nesta sexta-feira para o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, sob protesto de muitos admiradores, que acham que os sírios o mereciam). Na manhã seguinte, três das quatro instalações do grupo em Alepo foram bombardeadas, destruindo os carros e caminhões que eles usam em suas operações de resgate. Com a redução de sua capacidade operacional, eles têm ido apenas para os locais onde há sinais de sobreviventes. O que significa que não têm mais resgatado os corpos para lhes proporcionar um enterro segundo as prescrições do Islã.
Um dos aspectos mais estarrecedores desse conflito é a preferência que o regime parece dar a atacar a população civil, em detrimento até dos alvos rebeldes. Daí o uso maciço de barris cheios de explosivos e pedaços de metais, assim como de armas químicas, para causar o máximo de mortos e feridos entre os civis, de forma indiscriminada. Há um componente de ódio nisso, um desejo de punição coletiva frente à “traição” da população que se voltou contra o regime. Mas há também o objetivo prático de rebaixar o moral da população, e desencorajá-la a apoiar os insurgentes. Isso inclui o ataque a quarteirões residenciais e a hospitais. Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras, houve 23 ataques contra hospitais do leste de Alepo de julho para cá. Entre os dias 30 e 3, quatro hospitais foram bombardeados. Incluindo sete bombardeios contra o maior hospital de Alepo, no dia 1.º. A cidade tem oito hospitais, todos sobrecarregados com feridos.
A foto que rodou o mundo do menino Omran Daqneesh, sentado, com olhar atônito e coberto de pó, na poltrona de uma ambulância, foi tirada durante uma operação dos capacetes brancos. Nem sempre o final é feliz, no entanto, e muitas vezes os voluntários salvaram vítimas e um tempo depois as encontraram mortas em outro bombardeio. Sobretudo diante da investida das forças leais ao regime para recuperar a parte de Alepo ainda sob controle rebelde, os capacetes brancos frequentemente têm a macabra sensação de enxugar gelo. Ainda mais com o fracasso de tréguas sucessivas. Até porque essas tréguas são precedidas e seguidas de intensificação dos ataques, para conquistar posições e torná-las fatos consumados no terreno.
No dia 17, uma trégua foi interompida por um ataque de aviões americanos que matou 62 soldados leais ao regime. Os EUA alegaram que seu alvo era o Estado Islâmico e que se tratou de um erro. Dois dias depois, o governo sírio anunciou o fim do cessar-fogo. Aviões sírios ou russos bombardearam um depósito do Crescente Vermelho Sírio na área rural de Alepo. Ali foram destruídos caminhões carregados com alimentos e remédios para 78 mil civis. Na segunda-feira, o secretário de Estado americano, John Kerry, anunciou que os Estados Unidos não negociarão mais com a Rússia: “Pessoas que querem seriamente fazer a paz se comportam diferentemente da Rússia”. O regime sírio ofereceu na quinta-feira anistia aos insurgentes e a chance de abandonar Alepo com suas famílias. Eles recusaram e disseram que continuarão resistindo.
Os capacetes brancos continuarão tendo muito trabalho. E, depois deles, o Observatório, em sua triste tarefa de contar os mortos.
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