Lourival Sant’Anna, de Nova York
Num frio de zero grau centígrado, Luz Cruz, de 75 anos, saía na manhã desta segunda-feira do Centro de Saúde da Família do Harlem, bairro pobre do norte de Manhattan, com um pedido de radiografia na mão, depois de uma consulta. “Não sei se tenho gripe ou algo mais grave”, disse Luz, que nasceu em Porto Rico e mora em Nova York há 58 anos. “Se precisar de hospital, e o Obamacare acabar, estou perdida.”
Graças à Lei de Atendimento Acessível, aprovada em 2010, conhecida pelo nome de seu criador, o presidente Barack Obama, Luz pôde se consultar de graça, e também receberá remédios gratuitos. Pela radiografia, ela pagaria 30 dólares, porque sua aposentadoria de pouco menos de 1.400 dólares permite. Uma internação ficaria por conta do Obamacare, que os republicanos estão desmantelando no Congresso, antes mesmo de Donald Trump assumir na sexta-feira, 20.
Luz trabalhava em uma joalheria, e a empresa pagava seu plano de saúde. Depois que se aposentou, há 15 anos, ela ficou sem cobertura. Sua aposentadoria está pouco acima do valor de 138% do Nível Federal de Pobreza (FPL), ou 1.353 dólares mensais, e por isso ela não tem direito ao Medicaid, a assistência médica para pessoas com mais de 64 anos e baixa renda, e também para quem tem menos de 19 anos.
Na maioria dos Estados americanos, incluindo Nova York, foi adotada a expansão do Medicaid, garantindo a cobertura para quem ganha até 1.353 dólares, ou, em caso de famílias com três membros, por exemplo, uma renda total de 2.574 dólares. A situação de 19 Estados que não aderiram à expansão é muito pior: a cobertura do Medicaid é para quem ganha no máximo 44% do FPL, ou 435 dólares por mês, no caso de uma pessoa, e 820 dólares, para uma família de quatro membros.
O governo Obama foi derrotado em 2012 numa disputa na Suprema Corte, que garantiu aos Estados o direito de não expandir o Medicaid. De acordo com o Departamento de Saúde americano, mais de 2,5 milhões de pessoas ficaram descobertas com essa decisão, porque não têm a renda mínima exigida pelos convênios privados, e não se qualificam para o Medicaid.
Lilly May Jones, de 77 anos, também saía ontem de manhã com um pedido na mão, para uma mamografia, do Centro de Saúde Helen B. Atkinson, também no Harlem. “Todo ano, eu faço esse exame”, contou, sorridente. Lilly é beneficiada com o Medicaid, e para ela nada muda com o fim iminente do Obamacare. Mas ela diz que suas duas filhas gêmeas, de 50 anos, passaram a ter plano de saúde graças à lei aprovada por Obama em 2010.
Na semana passada, a maioria republicana no Senado e na Câmara aprovou a retirada de verbas do Orçamento para o Obamacare. Foi a primeira iniciativa dos republicanos para desmantelar o programa mais importante do governo Obama. Os republicanos têm maioria sobre os democratas de 52 a 48 no Senado e de 241 a 194 na Câmara. Em se tratando de uma emenda apenas orçamentária, a proposta pôde ser aprovada por maioria simples. Os republicanos já tinham maioria em ambas as Casas antes da eleição de Trump, mas Obama vetava todas as iniciativas contrárias à Lei de Atendimento Acessível.
Na sexta-feira 13, Trump tuitou: “A Lei de Atendimento ‘Inacessível’ em breve virará passado!” No dia seguinte, em entrevista ao jornal The Washington Post, ele explicou que já tem um plano “praticamente concluído” para substituir o Obamacare, e que ele garantirá “seguro para todos”. O presidente eleito não entrou em detalhes, mas disse que a cobertura de saúde passará a envolver mais deduções do Imposto de Renda.
De acordo com a Receita Federal americana, 6,5 milhões de contribuintes foram punidos no ano passado por não terem convênio de saúde. As multas somaram $3 bilhões de dólares, dando uma média de 461 dólares por contribuinte. Por outro lado, 5,3 milhões de contribuintes receberam deduções do Imposto de Renda por terem plano de saúde. Eles receberam um total de US$ 19,2 bilhões, ou 3.622 dólares em média para cada um.
Trump acrescentou que vai pressionar os laboratórios farmacêuticos a diminuir os preços dos remédios: “Eles são protegidos politicamente, mas não mais”.
Na falta de detalhes sobre como será esse “Trumpcare”, a interpretação dos republicanos é de que sua proposta causará uma queda nos preços dos convênios, tornando, nesse sentido, mais acessíveis. Uma das críticas dos republicanos é a de que o Obamacare, ao forçar os americanos a contratar um plano de saúde, por meio de cobranças a mais no Imposto de Renda para os que não o fazem, causou um aumento de 30% nos preços do mercado.
De acordo com o governo, mais de 20 milhões de americanos passaram a ter cobertura de saúde graças ao Obamacare. A lei ampliou a cobertura mínima e impôs regras sobre doenças pré-existentes que protegem os usuários. Agora, pacientes com doenças crônicas e graves, que exigem tratamentos caros, assim como as pessoas mais velhas, têm medo de ficarem descobertos.
O deputado Charlie Dent foi um dos nove republicanos que votaram contra a proposta na Câmara, por considerar que o Obamacare não deveria ser derrubado sem que haja um programa para substituí-lo.
Em entrevista à CNN na segunda-feira, ele disse que não conhece os detalhes da proposta mencionada por Trump, mas que espera que ela represente a preocupação do presidente em colocar outro programa no lugar do Obamacare, evitando um vazio: “Acho que os instintos dele sobre essa questão em geral são bons, que ele quer uma substituição simultânea à saída de vigor (do Obamacare), e que ele está realmente se referindo a acesso seguro de saúde no sentido de que possa ser pago pelas pessoas”.
Dent reconheceu, no entanto, que ainda não há uma alternativa pronta à legislação em vigor desde 2010: “Partes dela precisam ser derrubadas, partes precisam ser substituídas e outras partes precisam ser mantidas. Acho que todos nós precisamos ter um discurso apropriado a respeito disso, e é importante que a Câmara, o Senado e o novo governo desenvolvam e articulem melhor o que é que vamos fazer exatamente”.
Do outro lado, o senador democrata Bernie Sanders, derrotado nas primárias do partido pela candidata Hillary Clinton, está liderando um movimento em favor da manutenção do Obamacare. No domingo, milhares de pessoas se manifestaram em várias cidades dos EUA, para protestar contra a derrubada da lei.
Sanders, que representa a esquerda do partido, propõe ir além do programa, que está baseado em convênios particulares, e avançar para a criação de uma rede pública de saúde, o que não existe nos EUA. “Nossa tarefa hoje é defender a Lei de Atendimento Acessível”, disse ele a cerca de 10 mil manifestantes no Condado de Macomb, no Michigan, reduto sindicalista. “Nossa tarefa amanhã é criar um sistema de atendimento para todos.”
Trump disse na entrevista que está esperando, para apresentar o plano, a ratificação, pelo Comitê de Finanças do Senado, do secretário de Saúde por ele nomeado, o deputado republicano Tom Price. A data da sabatina não foi marcada ainda pelo comitê. Ele se disse confiante de que conseguirá passar a nova lei nas duas Casas, mas não quis explicar como obteria o apoio dos democratas, que é necessário, para a maioria qualificada.
O presidente eleito disse que espera que os republicanos no Congresso também ajam de forma rápida e unida em outras prioridades de seu governo, como diminuir impostos e começar a construir o muro na fronteira com o México. As próximas semanas serão animadas.
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