África do sul: a crise de lá, a crise daqui

JACOB ZUMA: acostumado a dançar em comícios, presidente viu popularidade cair e seu partido ser derrotado nas urnas/ John Moore/ Getty Images

Lourival Sant’Anna

O Congresso Nacional Africano (CNA), partido do presidente Jacob Zuma e do falecido Nelson Mandela, ícone da luta contra o apartheid, obteve nessa quarta-feira seu pior resultado da história das eleições multirraciais da África do Sul, iniciadas em 1994. No que representa o prenúncio do fim do voto orientado pela raça e pela etnia, a Aliança Democrática (AD), partido antes vinculado à minoria branca e desde maio do ano passado liderado por um negro, derrotou o CNA no coração econômico do país, Johannesburgo, e na Baía de Nelson Mandela, onde fica Port Elizabeth, com todo o peso simbólico que o nome da região carrega. Na área metropolitana de Tshwane, que inclui a capital, Pretória, o CNA ficou virtualmente empatado com a AD no voto popular por 42,85% a 41,43%, embora, pelo sistema distrital, o partido do governo tenha abocanhado 46 cadeiras no Conselho Municipal, contra apenas 20 cadeiras para a AD.

As eleições foram para as câmaras de vereadores de todo o país, que nomeiam os prefeitos e secretários municipais. Mas eram consideradas um plebiscito para o governo de Zuma, mergulhado em escândalos de corrupção e numa crise econômica. Noutra derrota simbólica, o CNA perdeu no município de Nkandla, terra natal de Zuma e epicentro de um dos escândalos de corrupção que envolvem o presidente. O Partido da Liberdade Inkatha (PLI), que representa a etnia zulu, a mesma de Zuma, obteve 54% dos votos, contra 44,25% para o CNA. No distrito de Nkandla, que fica dentro do município de mesmo nome, e onde Zuma vota, o CNA conquistou uma vitória apertada sobre o Inkatha, por 1.383 a 1.280 votos.

Com apoio do CNA, que controla dois terços do Parlamento, Zuma sobreviveu a um processo de impeachment em abril, por 233 votos contra e 143 a favor. O processo foi instaurado no Congresso depois que a Corte Constitucional condenou o presidente por desobedecer a ordem da Justiça de ressarcir os cofres públicos em US$ 16 milhões, desviados para uma reforma em seu complexo residencial em Nkandla. Visitado por este repórter em 2008, quando estava ainda em construção, o complexo tem o estilo arquitetônico das moradias tradicionais africanas, em que cada quarto é uma cabana, e a cozinha é coletiva. Só que com todo o luxo e a grandiosidade para acomodar as cinco famílias e inúmeros agregados do presidente.

Tramitam contra Zuma 783 acusações da Procuradoria-Geral da República, por corrupção, lavagem de dinheiro e extorsão. Com suas cinco mulheres e outras tantas amantes, e mais as acusações de estupros que recaem sobre ele, Zuma é querido na zona rural e nas cidades menores, sobretudo pelos zulus, a etnia mais numerosa do país, com 22% da população. Primeiro presidente zulu (Mandela e seu sucessor, Thabo Mbeki, eram da etnia cossa, 16% da população), Zuma canta e dança músicas zulus em seus comícios, e apela para o voto negro e em especial de sua etnia. A AD está se contrapondo a esse apelo, com uma composição multirracial. Já o novo partido de esquerda Combatentes da Liberdade Econômica (CLE) tenta disputar com o CNA o voto dos negros e dos pobres. Espécie de PSOL sul-africano, seus deputados interromperam várias sessões do Parlamento para protestar ruidosamente contra a corrupção no governo Zuma. Já o Inkatha é tradicionalmente o grupo dos zulus, e no passado apoiou o apartheid porque lhe garantia o domínio sobre os bantustões (áreas reservadas aos negros) da província Kwazulu-Natal, reduto da etnia, e onde se localiza Nkandla.

No nível nacional, o CNA teve 54,14% dos votos, contra 26,62% para a AD, 8,07% para o CLE e 4,37% para o Inkatha. Em Johannesburgo, a AD venceu com 41,94% (28 cadeiras), e o CNA obteve 41,50% (21 cadeiras). Na Baía de Nelson Mandela, que já era governada pela AD desde as eleições locais anteriores, em 2011, o partido venceu novamente com 46,71% dos votos (57 cadeiras), enquanto o CNA teve 40,92% (50 cadeiras).

O líder da AD, Mmusi Maimane, que é negro, comemorou o bom desempenho ressaltando o aspecto multirracial de seu partido: “Acho que o povo ouviu nossa mensagem e que os sul-africanos ainda acreditam no sonho de uma África do Sul não-racial, e ainda querem que nosso país prospere”.

O CLE teve 10,51% dos votos em Johannesburgo e 11,73% na Baía de Nelson Mandela, mas não conquistou nenhuma cadeira, em razão do sistema proporcional. Suas votações expressivas também são um fator de preocupação para o CNA, uma frente ampla, mas que historicamente representa os negros e o pensamento de esquerda, como pretende o CLE.

Nas eleições municipais de 2011, o CNA teve 61% dos votos e a AD, 23,8%. Em um relatório interno do partido, em outubro, o secretário-geral do CNA, Gwede Mantashe, observou que a marca dos 60% dos votos era “um ponto de inflexão psicológico e político que seria interpretado como uma indicação de morte do movimento”. O CNA teve 54%.

Além da corrupção, a classe média e urbana reage aos problemas econômicos. O país não se reergueu depois da crise financeira global de 2008/2009. O desemprego, um problema crônico no país que o fim do apartheid não resolveu, está em 27%, e atinge mais da metade da população com menos de 35 anos de idade. A queda nos preços das commodities e uma seca que prejudica a agricultura têm desacelerado a economia. O crescimento foi de 1,3% no ano passado, e neste ano o Banco Central prevê que o índice ficará em torno de zero. No primeiro trimestre, a economia encolheu 1,2%.

O país tem enfrentado uma onda de greves no importante setor de minérios, na indústria e nos serviços públicos, como bombeiros, correios e coleta de lixo. O sistema de geração de energia elétrica está sucatado, causando longos blecautes.

O que ainda assegura o apoio ao governo são programas sociais semelhantes ao Bolsa Família, explica Gareth Newham, diretor da Divisão de Governança, Crime e Justiça do Instituto de Estudos da Segurança, em Pretória. Os programas beneficiam mais de 17 milhões de pessoas, ou 32% da população de 53 milhões. “Eles mantêm seu apoio por meio do clientelismo”, analisa Newham. “Eles dizem aos beneficiários dos programas que, se não votarem no CNA, perderão a bolsa. Além disso, o CNA ajuda líderes tradicionais, que têm autoridade sobre as zonas rurais. Esses líderes não eleitos recebem salários substanciais e privilégios como automóveis, se apoiarem o CNA e garantirem o voto para o partido em suas áreas.”

O cientista político observa que, “quanto mais educados e mais bem empregados, menores as chances de votar no CNA, por causa da corrupção que tomou conta do partido”. O desempenho declinante do partido governista se torna mais significativo pelo forte uso da máquina pública durante a campanha. No domingo, último dia de comícios antes da votação de quarta-feira, o CNA alugou 2 mil ônibus para encher dois estádios com seus simpatizantes. O partido fez uma campanha visivelmente mais rica do que os seus concorrentes.

Um pouco como aconteceu com o populismo de esquerda no Brasil nos últimos anos — e são evidentes os paralelos entre o PT e o CNA e entre Lula e Zuma, que também não recebeu educação formal —, Newham vê uma “clara ligação” entre corrupção e crise econômica. “A atual elite política sul-africana está preocupada prioritariamente com sua própria riqueza e bem-estar”, observa o estudioso. “Consequentemente, eles não impulsionam políticas para melhorar as perspectivas econômicas do país.”

Como exemplo, ele cita os prejuízos das empresas estatais, causados pela má gestão. “O contribuinte tem de gastar bilhões de rands para manter essas organizações funcionando. As pessoas indicadas para administrá-las não têm conhecimento de gestão e ficam ocupados em extrair riqueza das empresas entregando os contratos para amigos e aliados políticos.” Soa familiar. “Portanto, por causa da corrupção, não somos capazes de usar os recursos públicos para promover o crescimento econômico. É por isso que o CNA está perdendo apoio”, conclui Newham.

Em dezembro do ano que vem, o CNA realizará sua conferência nacional, que ocorre a cada cinco anos. Eleito em 2009 e reeleito em 2014, Zuma não pode concorrer a um terceiro mandato em 2019, mas “ele e seus aliados tentarão garantir que o partido escolha candidatos que mantenham sua rede de clientelismo”, prevê Newham. “Zuma também vai querer que o ajudem a ficar fora da prisão, se for processado pelas 783 acusações que enfrenta. Por outro lado, muitos membros do CNA tentarão eleger novos líderes que possam reformar o partido para melhorar a governança na África do Sul. Se o grupo de Zuma vencer, o país continuará a declinar e o CNA provavelmente sofrerá perdas ainda maiores em 2019.”

Ao comentar as derrotas de quarta-feira, o vice-presidente Cyril Ramaphosa, histórico líder na luta antiapartheid, afirmou, referindo-se aos oposicionistas: “Eles pensam que somos arrogantes, autocentrados, que servimos só a nós mesmos, e eu gostaria de discordar de tudo isso e dizer que somos uma organização que escuta”. Parece que dezembro do ano que vem será o momento de provar isso.

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