Tragédia e farsa: a Turquia pós-golpe

ENCURRALADOS: soldados tentam se proteger da fúria de civis em Istambul/ Gokhan Tan/ Getty Images

Lourival Sant’Anna

Karl Marx escreveu que “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda, como farsa”. Farsa e tragédia se misturaram no quarto golpe militar na Turquia desde os anos 60 — e o primeiro miseravelmente fracassado. Depois de ficar algumas horas desaparecido na noite de sexta para sábado, e de ter de usar o aplicativo Facetime para conceder uma entrevista e conclamar a população a sair às ruas para defender seu governo, o presidente Recep Tayyip Erdogan voltou ontem a Ancara e recuperou o controle do governo. Saldo da aventura: 265 mortos, 1.440 feridos e 2.839 militares presos, segundo o primeiro-ministro Binali Yildirim.

O levante começou na noite de sexta, com a tomada de duas pontes sobre o Estreito de Bósforo, que ligam os lados asiático e europeu de Istambul, a principal cidade do país. O acesso ao Aeroporto Kemal Atatürk — o mesmo que foi alvo de um atentado suicida que deixou 41 mortos no dia 28 — foi ocupado por tanques. Em Ancara, a capital, aviões de guerra bombardearam tanques de unidades leais ao governo e um helicóptero das forças rebeldes que atacou alvos da polícia foi abatido.

Os militares golpistas invadiram os estúdios da TRT, a TV estatal, e obrigaram uma âncora a ler um longo manifesto, no qual prometiam dizimar a corrupção e restaurar a ordem democrática. Em contrapartida, Erdogan apareceu na emissora local da CNN em turco, falando pelo Facetime com outra âncora. Muitas pessoas atenderam o chamado do presidente e foram às ruas manifestar-se contra o golpe. Em represália, soldados rebeldes atacaram a sede da CNNTurk em Istambul. Houve explosões na sede do Parlamento em Ancara. Diferentes unidades das forças de segurança se enfrentaram na capital, disputando o controle sobre os prédios do Parlamento, do MIT (serviço de inteligência) e de outras repartições públicas.

Na manhã de sábado, as forças leais ao governo derrotaram os rebeldes. Os soldados que ocupavam uma das pontes sobre o Bósforo foram cercados pelas tropas governistas. Manifestantes pró-Erdogan mais exaltados — e mais musculosos — aproveitaram para espancar os soldados, antes de eles se espremerem em ônibus do Exército que os levaram para as carceragens militares.

Em entrevista coletiva na manhã deste sábado, o general Umit Dundar, comandante do 1.º Exército e nomeado chefe interino do Estado-Maior, declarou: “A tentativa de golpe foi rejeitada imediatamente pela cadeia de comando. O povo saiu às ruas e manifestou seu apoio pela democracia. A nação nunca esquecerá essa traição”.

O Partido da Justiça e do Desenvolvimento, de Erdogan, obteve maioria absoluta no Parlamento — 317 cadeiras de um total de 550 — nas últimas eleições, em novembro. Sua popularidade é resultado de uma mistura de crescimento econômico sustentado — 4% em 2015 —, a adesão de parte do eleitorado a seu apelo de líder muçulmano moderado e a habilidade em usar os conflitos com os curdos e com o Estado Islâmico para unir a opinião pública a seu favor. Tudo indica que a intentona terá esse efeito também.  Os partidos da oposição nacionalista e de esquerda se reuniram neste sábado no Parlamento para rechaçar o golpe e reafirmar a legitimidade do governo.

Como tem feito em outras ocasiões, Erdogan colocou a aventura militar na conta de Fethullah Gülen, líder muçulmano moderado auto-exilado na Pensilvânia desde 1999. “Tenho um recado para a Pensilvânia: você já se envolveu em traições suficientes contra essa nação”, disse o presidente. “Se tiver coragem, volte a seu país.” Gülen é líder do movimento Hizmet (“Serviço”, em turco), inspirado na corrente sufista do Islã, que prega a tolerância entre as religiões. Em seus vídeos gravados no YouTube, ele condena a contaminação da política pela religião, por Erdogan.

Essa preocupação está provavelmente na raiz da tentativa do golpe. Pela doutrina militar turca, elaborada por Kemal Atatürk, fundador da Turquia moderna depois da derrota do Império Otomano na 1.ª Guerra Mundial, as Forças Armadas são guardiãs da separação Mesquita-Estado. Para Atatürk (apelido que significa “pai dos turcos”) e outros jovens oficiais, foi essa contaminação que levou à derrocada otomana.

Depois de derrotar em seis eleições sucessivas, desde 2002, a oposição nacionalista e de esquerda, Erdogan passou a identificar o Hizmet, um movimento capilar, que conta com forte apoio dos grêmios empresariais turcos, como seu maior inimigo. No fim do ano passado, o governo confiscou o jornal do movimento, Zaman, que tinha a maior circulação do país, e fechou seu canal de TV. Jornalistas e muitos militantes do movimento foram presos.

Gülen “negou categoricamente” a acusação, condenando “nos mais firmes termos” a tentativa de golpe: “Como alguém que sofreu múltiplos golpes militares durante as últimas cinco décadas, é especialmente insultante ser acusado de ter alguma relação com esta tentativa”.

Gülen, de 75 anos, concedeu a este repórter, em abril, sua única entrevista a um jornalista brasileiro, em sua casa na zona rural de Saylorsburg, Pensilvânia. Nela, lançou a suspeita de que agentes do governo turco possam estar por trás de atentados terroristas contra alunos e professores da rede de escolas do Hizmet. Ele citou como exemplo um atentado ocorrido no dia 31 de março em Mogadíscio, na Somália, que matou cinco pessoas e feriu seis. “O Al-Shabab (grupo terrorista somali) disse que não foram eles que executaram o ataque contra a van escolar”, afirmou o líder sufi. “O governo turco pressiona os governos a fechar nossas escolas e, como não tem conseguido, provavelmente está tentando intimidar os professores e alunos.” O Hizmet possui 1.400 escolas em 170 países, incluindo uma em São Paulo.

O Centro Cultural Brasil-Turquia, vinculado ao Hizmet, também condenou a intentona, e ao mesmo tempo lançou dúvidas sobre sua autenticidade: “A Turquia teve quatro golpes militares, e o que ocorreu ontem não parecia ser um golpe militar comum”, afirma uma nota do movimento. “A mídia, o Parlamento, a Diretoria Geral da Polícia não foram tomados; os governantes e os líderes da oposição não foram detidos. Apenas uma TV estatal (TRT) foi tomada e transmitiu a mensagem enviada pelos golpistas. Todas as outras emissoras continuaram suas transmissões normalmente”.

A nota observa: “Desde dezembro de 2013, Erdogan e o governo turco culpam o movimento Hizmet por todos os desastres e grandes problemas no país. Desta vez não foi diferente. Logo após os primeiros momentos desses acontecimentos, o presidente Erdogan e seus ministros acusaram, com declarações irresponsáveis e difamatórias, o Hizmet de liderar uma tentativa de golpe. Isso cria ainda mais suspeitas sobre o que aconteceu”. O movimento afirma que, “no final de aproximadamente 5 horas de confusão”, Erdogan declarou: “Esta tentativa de golpe foi um presente de Deus, assim poderemos fazer uma limpeza geral nas Forças Armadas”. Sem dúvida, conclui a nota, “os acontecimentos de hoje deixaram Erdogan e seu governo mais fortes e legitimarão futuras ações autoritárias que eles venham a realizar”.

O cientista político Hakki Tas, pesquisador das relações civil-militares da Universidade Ipek, de Ancara (vinculada ao Hizmet), também aponta algumas excentricidades nessa aventura militar. “A Turquia esteve sob regime militar direto de forma intermitente por aproximadamente seis anos entre 1960 e 1983”, começa o professor. “Fenômeno familiar para a sociedade turca, o golpe sempre foi caracterizado pela tomada simultânea das emissoras de rádio e de TV, bem como de instituições políticas e burocrática cruciais. Dessa vez, os eventos se desenrolaram de forma heterodoxa. É difícil entender como as operações e táticas dos golpistas levariam a uma tomada do poder.” Por exemplo, diz ele, o Parlamento foi alvo de explosões pela primeira vez na história da República. “Além de seu efeito desabonador, não está claro como isso ajudaria em seu propósito.” A maioria dos golpes, acrescenta Tas, começa com a detenção de líderes políticos; esse começou com o bloqueio da ponte em Istambul e ataques aéreos em Ancara.

Ele observa, ainda, que, desde as primeiras horas, governo e oposição se uniram em torno da supremacia do regime civil, e políticos e a população se colocaram firmes contra o golpe. “De fato, foi o povo nas ruas que fez o golpe fracassar, superando os soldados numericamente e resistindo contra eles. O Exército, há muito tempo considerado a instituição estatal mais confiável, pode não gozar mais desse prestígio.”

De acordo com o jornalista independente Yavuz Baydar, de Istambul, “todas as análises apontaram para um golpe desenhado pelo Movimento Gülen”. Entretanto, diz ele, “dado o amplo espectro das tropas em todo o país e o conteúdo do manifesto, é altamente provável que a estrutura dos conspiradores seja híbrida, composta de várias afiliações”. Baydar observa: “É sabido que a crise síria e a guerra contra o PKK (guerrilha curda) causou fissuras dentro do Exército”.

Por outro lado, aponta o jornalista, havia informações antes da tentativa de golpe de que era planejada uma onda de prisões de oficiais gülenistas na manhã deste domingo. Assim, um “golpe preventivo” teria sido lançado na antevéspera. “Se isso for verdadeiro, explica por que a ação foi tão mal planejada e precipitada, e fracassou tão depressa.”

Baydar diz que a conspiração foi um presente para Erdogan “fazer o que pretende, que é avançar na direção de um regime de um homem só, eliminando toda a oposição que estiver no caminho”. Ele diz que 2.745 juízes e promotores — cerca de um quinto do total — foram suspensos de suas funções, e emitidos mandados de prisão para 188 juízes. “Portanto, o golpe representa uma luz verde não só para tomar controle da mídia mas também para expurgar o Judiciário e os militares.”

Apontando para esses expurgos, Hakki Tas adverte que “evitar um golpe não traz democracia automaticamente”. O cientista político assinala: “A democracia turca já passava por turbulências antes da tentativa do golpe, e agora o governo pode escorregar para mais autoritarismo ainda. A partir de agora, qualquer tipo de oposição pode ser rotulada como pró-golpe”.

A “sobrevivência” à conspiração militar deve conferir ao regime um certo lustre democrático, para países que não estejam muito empenhados em examinar os detalhes de seu funcionamento. O episódio atraiu de novo manifestações de apoio dos Estados Unidos e da União Europeia, como já havia acontecido com os atentados terroristas. Assim como um golpe militar bem-sucedido teria congelado as negociações para o ingresso da Turquia na UE, o seu esmagamento pode até acelerá-las. Os turcos têm feito o trabalho pesado de absorver os imigrantes, em troca de ajuda de € 6 bilhões da UE, e cedido seu território como base para as operações da Otan contra o EI na Síria e no Iraque. As recompensas não tardam.

O uso feito pelo golpe, a partir de agora, terá muito de farsa. Mas o sangue derramado é tragicamente verdadeiro.

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