Índia: entre os números e a realidade

INDIANOS: o país diz ter crescido 7,6% em 12 meses, mas analistas internacionais questionam o número/ Rob Stothard/ Getty Images

Lourival Sant’Anna

A Organização Central de Estatísticas, o IBGE indiano, anunciou que o PIB do país cresceu 7,6% no ano fiscal de abril de 2015 a março deste ano. No primeiro trimestre, o incremento foi de 7,5%, frente a igual período do ano passado. Com esses índices, a Índia estaria andando mais depressa que a China, que registrou crescimento anual de 6,9% e trimestral de 6,7%. O país passaria a ser então o que mais cresce entre as grandes economias do mundo. Só que não. O índice oficial indiano foi colocado em dúvida pela Seção de Assuntos Econômicos e de Negócios do Departamento de Estado americano, e por consultores privados.

Não que a Índia não esteja andando a um ritmo invejável, ainda mais para tartarugas como o Brasil, que um dia pretendeu estar junto com ela no grupo dos grandes emergentes. Mas a inconsistência na métrica indiana, que foi reformulada em 2011, revela as consequências econômicas da autocondescendência do governo do primeiro-ministro Narendra Modi, que chegou ao poder com a promessa de “governo mínimo com governança máxima” e, ao final de dois anos, parece estar invertendo a fórmula, com muito governo e pouca governança.

Os economistas começaram a desconfiar do índice oficial indiano ao observar outros dados. A produção industrial, por exemplo, cresceu apenas 0,6% no primeiro trimestre. As exportações estão em queda há um ano e meio. A demanda do consumidor na zona rural também está inexpressiva, depois de dois anos consecutivos de chuvas insuficientes, que reduziram a renda familiar. Para este ano, esperam-se chuvas sejam mais generosas e, com elas, uma recuperação no setor agrícola. Ao lado disso, o crescimento deverá continuar sendo puxado pelo setor de serviços, segundo Rishi Shah, economista da Deloitte Touche Tohmatsu em Nova Délhi. As vendas de segmentos ligados à construção civil, como cimento e aço, têm aumentado, assim como de carros e de veículos comerciais. Os lucros das empresas estão subindo. “Há uma melhora incremental na economia, mas não é tão grande”, resume Devendra Kumar Pant, economista-chefe da empresa de análise de risco India Ratings and Research.

“Ostensivamente, a Índia é um dos países que crescem mais depressa no mundo, mas o sentimento deprimido de seus investidores sugere que o crescimento de aproximadamente 7,5% pode estar superestimado”, afirma relatório da seção econômica do Departamento de Estado americano, que acrescenta que o governo indiano “tem sido lento para propor reformas econômicas que acompanhem sua retórica”.

“O investimento do setor privado indiano não está pegando impulso na Índia”, concorda o indiano Ruchir Sharma, estrategista-chefe global do banco Morgan Stanley. Ele associa o desalento dos investidores à inflação de 6,3% em 2015, e elogia  a decisão do Banco Central Indiano de tentar reduzi-la para 5% este ano: “Se você olha para as economias bem-sucedidas do mundo — China, Coreia do Sul, Taiwan —, todas cresceram rapidamente quando seus índices de inflação eram baixos.”

O relatório do Departamento de Estado critica o protecionismo comercial indiano, que tem levado indústrias multinacionais a se instalar no país, para evitar as altas taxas alfandegárias e ter acesso ao seu enorme mercado — como foi feito também no Brasil. O programa de Modi, chamado “Make in India” (Faça na Índia), é elogiado, no entanto, por Sharma. Para ele, é importante aproveitar o aumento dos salários na China para se industrializar ganhar mais fatias de mercado, como têm feito o Vietnã, Bangladesh e Camboja, por exemplo. “Mas devemos manter nossas expectativas baixas”, arrematou o analista.

No ano que vem, haverá eleições em Estados importantes, como Uttar Pradesh, o maior do país, com 200 milhões de habitantes, e Gujarat, de onde provém o primeiro-ministro Modi. O seu Partido Bharatiya Janata (BPJ), nacionalista, costuma ter a sua base nas classes médias. Agora, está tentando mudar esse perfil para atrair o apoio das chamadas “castas inferiores”, com seus grandes contingentes de eleitores. Modi promoveu uma reforma no gabinete, que incluiu dez novos ministros provenientes dessas castas. Tecnocratas foram substituídos por figuras populares. O ministro das Finanças, Jayant Sinha, ex-executivo do setor financeiro, virou secretário de Aviação Civil. Dois caciques do BJP com pouca experiência na área de finanças públicas, Santosh Gangwar e Arjun Ram Meghwal, vão dividir a pasta.

Para acomodar todos os interesses políticos, o gabinete foi inflado. No governo do ex-primeiro-ministro Manmohan Singh, do Congresso Nacional Indiano, força política dominante do país, que ficou no cargo durante dez anos, havia 77 ministros. Quando assumiu, Modi o enxugou para 45, como parte de suas políticas modernizantes. Agora, o gabinete passou para 78.

“Modi está tentando, mas ele não vai além do jogo de cintura político, que requer subsídios contínuos e enormes para muitos itens, incluindo gás de cozinha, gasolina, diesel, eletricidade, açúcar, trigo e fertilizantes”, observa o economista Mohan Guruswamy, presidente do Centro de Políticas Alternativas, um instituto independente de Nova Délhi. “Ele é pequeno demais para a tarefa. A Índia está funcionando muito abaixo de seu potencial. Precisamos de reformas corajosas para atrair investimentos internos e externos.”

O objetivo das reformas, enumera o analista, deve ser: aumentar a relação poupança/PIB para incrementar os investimentos; ampliar a base tributária e arrecadar mais impostos; cortar os subsídios sobre itens como combustíveis e eletricidade para as classes média e alta; facilitar a aquisição de terras para projetos industriais e habitacionais; eliminar as restrições sobre investimento estrangeiro e as regras e burocracia que prejudicam o ambiente de negócios; e unificar o regime tributário de todas as regiões do país.

“O governo Modi já promoveu um amplo espectro de reformas em muitos setores”, pondera o economista Rajiv Kumar, pesquisador do Centro de Pesquisas de Políticas, em Nova Délhi. Segundo ele, essas reformas promoveram a inclusão financeira, com a abertura de 200 milhões de novas contas bancárias; a substituição de alguns subsídios por transferência de dinheiro, que chega aos beneficiários de forma mais eficiente; abertura, pela primeira vez, para investimentos estrangeiros no setor ferroviário; mudanças no esquema de financiamento das endividadas distribuidoras estatais de energia; e modernização da gestão, com mais transparência, melhor funcionamento das repartições públicas, adoção de tecnologia digital e redução da corrupção.

Autor do livro, “Modi e seus desafios”, lançado neste ano, Kumar reconhece, no entanto, que o governo ainda nem sequer tentou algumas reformas urgentes, na agricultura, educação, saúde, gestão das estatais, leis trabalhistas e no Judiciário. “Talvez porque sejam arriscadas demais politicamente”, analisa o economista. “A estratégia de Modi parece ser dar início a um ciclo de investimentos e extrair o máximo possível das melhorias na governança e das reformas incrementais, enquanto deixa reformas mais radicais para depois. A esperança é de que isso gere crescimento suficiente nos três anos de governo que ele ainda tem para garantir sua reeleição em 2019.”

O governo tem minoria no Senado, onde todas as leis têm de ser ratificadas. “O partido de Modi está provando do seu próprio veneno, já que ele bloqueava tentativas semelhantes de reformas feitas pelo governo anterior”, ironiza Guruswamy. “Naquela época, o próprio Modi se opunha à maioria das reformas.” Soa familiar.

Autor do livro “Perseguindo o Dragão: a Índia vai alcançar a China?”, Guruswamy observa que, mesmo aceitando que a economia indiana esteja crescendo mais depressa, o PIB chinês ainda é quatro vezes maior. “Em 2050, a economia chinesa ainda será o dobro da indiana, apesar de uma grande desaceleração no crescimento, por causa do envelhecimento da população”, prevê o economista. “Naquele ano, a população da Índia será de 1,6 bilhão, dos quais 900 milhões na classe média, e ainda será majoritariamente jovem. É por isso que a Índia desperta tanto otimismo.”

Outra razão para otimismo, segundo ele, é a participação crescente do Programa de Desenvolvimento do Ghat Ocidental (WGDP , na sigla em inglês) no crescimento do PIB indiano. Trata-se de um projeto de empreendimentos econômicos baseado em diretrizes de desenvolvimento sustentável, que gradualmente cobrirá toda a costa oeste do país.

Há muitas razões para acreditar no futuro da Índia. O problema são os políticos e a sua cultura presente. Mais uma vez, soa familiar.

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