O resultado do primeiro turno da eleição presidencial equatoriana não responde à pergunta que todos se fazem: como a vitória do candidato do governo, Lenín Moreno, com 39,35%, e sua ida para o segundo turno no domingo 4, com o banqueiro Guillermo Lasso, que teve 28,11%, situam o Equador em relação ao desmonte da esquerda populista na América do Sul? Noutras palavras, o presidente Rafael Correa, no poder desde 2007, é mais uma baixa da depreciação das commodities, que levou a uma guinada para a direita na região, ou é um sobrevivente?
“É uma situação contraditória para o presidente”, avalia Franklin Ramírez, da filial de Quito da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), em entrevista a EXAME Hoje. “O governo esperava ganhar no primeiro turno, e nesse sentido fracassou. Mas ao mesmo tempo a Aliança País (partido do governo) obteve maioria absoluta e o referendo sobre os paraísos fiscais (proposto por Correa) teve acima de 54% de aprovação. Lasso, com 2,6 milhões de votos, deixa seu movimento, Creo, em boa posição para o próximo ciclo político, enquanto a Aliança País, com 1 milhão a mais de votos, continua sendo o principal grupo.”
O governo de Correa, aí incluído Moreno, seu vice-presidente entre 2007 e 2013, foi atingido pelo escândalo de pagamento de propinas da construtora brasileira Odebrecht, que se espraiou por vários países da região, e principalmente por uma versão local do “Petrolão”, envolvendo a venda antecipada de petróleo para a China a um preço aviltado.
A oposição tentou explorar esse último escândalo principalmente, mas as pesquisas mostraram que a corrupção estava em quarto lugar na preocupação dos eleitores, depois da crise econômica, do desemprego e da criminalidade. “Os casos de corrupção afetaram mais os indecisos”, analisa Ramírez. Correa reagiu a uma denúncia contida nos Panama Papers (investigação internacional divulgada em abril de 2016) de que funcionários da Petroecuador e do governo haviam enviado dinheiro para o exterior, com a consulta popular sobre uma nova lei que proíbe funcionários públicos e candidatos de ter dinheiro em paraísos fiscais.
Ao longo de seus dez anos de governo, Correa aproveitou sua popularidade e a maioria no Congresso para aprovar reformas constitucionais que trouxeram estabilidade política ao Equador — onde antes raramente um presidente concluía seu mandato, derrubado ou por impeachment ou por levante indígena. Surfando também nessa onda, ele fez menção no ano passado de seguir o modelo de Hugo Chávez na Venezuela e introduzir a reeleição indefinida. A Aliança País reuniu as assinaturas necessárias para um referendo, a Corte Suprema autorizou, ele tinha a maioria de dois terços no Congresso, mas duas coisas evitaram que seguisse em frente, segundo Ramírez: sua preocupação em não manchar a própria biografia e a queda na popularidade resultante da crise econômica. “As pesquisas mostravam que ele tinha 55% de apoio, mas que a maioria não estava disposta a aceitar sua revolução cidadã indefinidamente.”
Foi o que se deu com Evo Morales, na Bolívia. Em fevereiro do ano passado, Morales, no poder desde 2006, e já no terceiro mandato, submeteu a referendo mudança constitucional para permitir a reeleição indefinida, e perdeu por pouco: 51% a 49%. Agora seu mandato termina em 2019 — se ele não tentar de novo aprovar a reeleição indefinida.
Morales teve três mandatos graças a um subterfúgio introduzido por Chávez: uma nova Constituição durante o primeiro mandato, que, segundo sua interpretação, “zerou” a contagem e permitiu mais dois mandatos. Chávez obteve, em 2009, a aprovação da reeleição indefinida. Ele permaneceu no poder entre 1999 e sua morte, em março de 2013, cinco meses depois de ser eleito pela quarta vez.
Em janeiro de 2014, a Assembleia da Nicarágua também aprovou a reeleição indefinida, beneficiando outro chavista, o presidente Daniel Ortega, no poder desde 2007. Eleito pela quarta vez em novembro, ele lançou sua mulher, Rosario Murillo, que já exercia um protagonismo no seu governo, como vice-presidente. Com isso, mesclou seu modelo com o de outro casal chavista. Depois de governar a Argentina entre 2003 e 2007, Néstor Kirchner lançou sua mulher, Cristina, à presidência, que exerceu dois mandatos, até 2015. Assim como aconteceu com o PT de Lula no Brasil, alguns integrantes do Partido Justicialista de Cristina cogitaram aprovar a reeleição indefinida, mas ambos os presidentes não permitiram que a ideia prosperasse.
Outro ponto em comum de todos esses governos populistas de esquerda foi terem aproveitado os altos preços do petróleo (caso de Venezuela e Equador), dos minérios (Equador e Bolívia), do gás (Bolívia) da soja e da carne (Brasil e Argentina) e do trigo (Argentina) para elevar os gastos sociais e outros gastos públicos e com isso impulsionar sua popularidade. No caso do Equador, Correa aumentou a receita também elevando os impostos, principalmente para as faixas de alta renda, que eram muito baixos, assim como a fiscalização contra a sonegação. E investiu essas receitas em obras de infraestrutura e em programas sociais.
Os gastos sociais dobraram entre 2006 e 2012. De acordo com o Instituto de Desenvolvimento Exterior, um centro de pesquisas britânico, o crescimento econômico do Equador foi o mais “inclusivo” entre 2006 e 2011. A renda dos 40% mais pobres aumentou oito vezes mais que a média nacional. A fatia da população abaixo da linha de pobreza caiu de 40% em 2006 para 23% em 2016.
Tudo isso sofreu um refluxo a partir de 2012, com o fim do boom das commodities. Depois de crescer 7,9% em 2011, o PIB equatoriano entrou em queda livre: 5,6% em 2012, 4,9% em 2013, 4,0% em 2014, 0,2% em 2015. O terremoto de abril do ano passado agravou a situação econômica, contribuindo para um encolhimento de 0,7% do PIB. O desemprego subiu de 4% para 5% — baixo para os padrões internacionais, mas a informalidade, que já era alta, cresceu.
O país sofreu também nos últimos meses com a valorização do dólar perante outras moedas. Desde 2000, o dólar é a moeda do Equador, adotada para conter a espiral inflacionária. Sua valorização dificulta as exportações. No dia 22 de janeiro, o governo obteve um empréstimo de 970 milhões de dólares do estatal Banco Industrial e Comercial da China, o que aliviou a pressão sobre dívidas de curto prazo. Entretanto, o problema permanece no médio prazo, com uma dívida externa de 32,752 bilhões de dólares, um terço de seu PIB, e fontes de receitas insuficientes para honrá-la.
Considerando essa situação, Correa e seu candidato tiveram um bom desempenho nesse primeiro turno. Moreno (cujo primeiro nome, Lenín, é compartilhado por 18 mil equatorianos, segundo a revista britânica The Economist) prometeu triplicar para 150 dólares o valor do benefício familiar do programa de transferência de renda para os mais pobres — sem explicar de onde tiraria esse dinheiro. Lasso, por sua vez, que foi dono do Banco de Guayaquil, um dos maiores do país, apresentou um programa bem mais liberal do que quando disputou com Correa em 2013, prometendo agora cortes de impostos e de gastos públicos.
A Aliança País fez uma forte campanha contra o ex-banqueiro, que afirma ter-se desfeito de sua participação no Banco Guayaquil, procurando associar sua imagem aos ganhos que o sistema financeiro teve em 1999 com o congelamento dos depósitos durante seis meses pelo então presidente Jamil Mahuad e à crise financeira de 2008/2009. De acordo com Ramírez, a imagem de Lasso ganhou projeção nacional juntamente com o seu banco, que espalhou pelo país pequenas agências.
“A alta rejeição de Lasso favorece a Aliança País”, estima o cientista político. Por muito pouco, na verdade, Moreno não se elegeu já no primeiro turno. Pela lei, se um candidato obtém mais de 40% dos votos e e fica ao menos 10 pontos percentuais à frente do segundo colocado, elege-se sem necessidade de segundo turno. Os dias que se seguiram ao primeiro turno, no domingo 19, foram eletrizantes, com a votação de Moreno aproximando-se dos 40%, e sempre mais de 10 pontos acima da de Lasso. Moreno afirma ter sido vítima de fraude — o que é um pouco paradoxal para o candidato de um presidente há dez anos no poder, e com forte controle sobre o Judiciário.
Por outro lado, a terceira candidata mais votada, Cynthia Viteri, que teve 16,26%, anunciou seu apoio a Lasso. O quarto colocado, Paco Moncayo, com 6,74%, também está ideologicamente mais próximo de Moreno que de Lasso. Somente o candidato que ficou em quinto, Dalo Bucaram, com 4,80%, pode ser considerado mais à esquerda, diz o especialista. Entretanto, observa Ramírez, não há uma transferência automática de votos. A votação mostrou uma clara divisão entre as classes média e alta, de um lado, em favor de Lasso, e os mais pobres apoiando Moreno, diz o especialista.
A perspectiva de derrota colocou de novo em evidência o lado obscuro da “revolução cidadã” de Correa, que ao longo de seu governo perseguiu implacavelmente a imprensa independente, com leis mais duras contra difamação e processos contra jornalistas e empresas de comunicação.
Em entrevista coletiva à imprensa internacional na quarta 22, Correa fez uma sombria advertência: “Se ganha a oposição (no segundo turno) e querem destruir tudo o que foi conquistado, existe a figura da morte cruzada. Temos maioria na Assembleia e em um ano poderíamos nos ver de novo”. Prevista na Constituição equatoriana, a “morte cruzada” permite que os poderes Executivo e Legislativo se dissolvam mutuamente nos três primeiros anos do mandato presidencial, o que levaria à convocação de novas eleições.
Correa insinuou que, nesse caso, ele se candidataria e venceria novamente Lasso, como fez em 2013: “A melhor maneira de me ter longe é se comportarem bem”, ameaçou Correa, que confirmou seu plano de ir morar por um tempo na Bélgica, país de origem de sua mulher, Anne Malherbe Gosselin. “Se se comportam mal, lanço-me novamente e volto a derrotá-los.”
Lasso respondeu: “O comentário de Correa reconhece implicitamente que vai ser derrotado no dia 2 de abril”. E prometeu que, se eleito, convocará um plebiscito sobre a reeleição indefinida, com o objetivo de bloquear de vez essa possiblidade. Enquanto o populismo e o autoritarismo exercerem o fascínio que exercem sobre os latino-americanos, no entanto, a alternância de poder estará sempre correndo risco.
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