Por que os assentados vendem seus lotes

Falta de assistência técnica, de infra-estrutura, de saúde e de educação leva até os mais experientes a desistir

 PRESIDENTE EPITÁCIO – Está fazendo um ano que Maria José dos Santos vendeu seu lote. E até hoje não sabe o que deu no seu gado. O mais provável é que nunca venha a saber. “Quando amanhecia, a gente ia lá olhar. Tinha uma vaca na frente e um bezerro de trás. Morto.” Essa é a imagem que ficou gravada na memória de Maria José, conhecida na agrovila como Dia. Foram 20 cabeças, no total, das quais seis bezerros.

Agrônomos e veterinários não aparecem no assentamento há pelo menos dez anos, quando a Companhia Energética de São Paulo (Cesp), que o criou, em 1983, para ribeirinhos expulsos pelas constantes inundações do Rio Paraná, “emancipou” as 625 famílias reassentadas na área rural do município de Presidente Epitácio, na região oeste de São Paulo. E um veterinário cobra R$ 200 para ir até lá, um preço proibitivo para os assentados.

Maria José vendeu seu sítio de 16,3 hectares (o tamanho padrão de todos os lotes do assentamento) no dia 3 de agosto de 2002, por R$ 50 mil. Continua vivendo na agrovila, onde tem uma casa e, ao lado, um bar.

O secretário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Presidente Epitácio, Sebastião Silva de Melo, estima que, ao longo desses 20 anos, entre 150 e 160 dos 625 lotes tenham sido vendidos, ou seja, 25%. O assentamento está, portanto, praticamente dentro da média de levantamento feito pelo Incra sobre uma amostra representativa em todo o Brasil (ver quadro): nos assentamentos onde predominam antigos posseiros ou moradores, a média de evasão é de 20,6%.

Maria José vendeu seu lote para Edineu Camargo, dono de um açougue em Presidente Epitácio, e que continua criando gado leiteiro. Muitos agricultores de Campinal, outra cidade da região, de Presidente Prudente e até de São Paulo também têm comprado lotes no assentamentos, para formar hortaliças ou para produzir leite, vendido ao Laticínio Jóia, de Presidente Epitácio.

Quando formou o assentamento, a Cesp doou seis resfriadores de leite, mas eles estão subutilizados. Como a produção é pequena, a maioria leva o leite quente, do dia apenas, para o laticínio. O Banco do Brasil oferece financiamento de até R$ 18 mil para o gado leiteiro, mas muitos assentados preferem não arriscar, porque teriam de produzir de 50 a 100 litros por dia para amortizar o empréstimo, e isso não está a seu alcance.

‘Dá para comer’ – É o caso de Tião Macalé, como é conhecido no lugar o secretário do sindicato. Ele se endividou para plantar mandioca – cuja tonelada caiu de R$ 97, em 2000, para R$ 35, em 2002 -, e não tem como investir no leite. Sebastião, ainda assim, não vai tão mal. Ele vende farinha de mandioca para feirantes – só não pode vender aos supermercados porque não tem embalagem com código de barras. “Farinha tem preço bom, dá para comer”, contenta-se.

De acordo com Sebastião, nos dez primeiros anos, a Cesp deu boa assistência ao assentamento. As vendas de lotes se intensificaram depois da emancipação, e antes da criação, há oito anos, do Pronaf, linha de crédito para a agricultura familiar. “Sou a favor da reforma agrária”, ressalta o líder sindical. “Mas ela tem de vir acompanhada de assistência técnica e crédito, sem burocracia.”

Assentamentos como os da Cesp em Presidente Epitácio – de ex-posseiros e moradores – são os que têm a menor taxa de evasão, indica o levantamento do Incra. Isso porque os assentados, como é o caso da população ribeirinha do Rio Paraná, mantêm fortes laços com a região e com o trabalho na terra.

Mais lotes tendem a ser vendidos – o que, diga-se de passagem, é ilegal – nos assentamentos constituídos por pressão das invasões de terra e, principalmente, naqueles criados por iniciativa do Incra e nas áreas de fronteira agrícola, onde os produtores exploram a terra por um tempo e depois comumente migram para outras paragens.

Mas a completa ausência de assistência técnica, que caracteriza o assentamento de Presidente Epitácio, é um dos motivos centrais da evasão, identificados no levantamento.

Abandono – Essa ausência de assistência – que não é compensada sequer pelo crédito, já que os assentados muitas vezes não acertam no seu uso – se junta à falta de infra-estrutura e de serviços públicos, para formar uma sensação de abandono: “As pessoas saem porque se sentem abandonadas em um ambiente isolado e estranho”, sintetizou um assentado em Carajás, no Pará, a um pesquisador do Incra.

A falta de atendimento médico, de escolas e de estradas são razões recorrentes apontadas pelos assentados e pelos técnicos locais para a venda e abandono de lotes. Outro motivo é a falta geral de incentivos, tanto à produção quanto à comercialização. E há casos críticos, como o da falta de água – não só no Nordeste, mas até em regiões de vastos recursos hídricos, como o Pontal do Paranapanema, onde o Assentamento Guanamirim, por exemplo, em Euclides da Cunha, criado há um ano e três meses, ainda não tem poços artesianos.

No fundo, o que a taxa de evasão nos assentamentos – 29,7% na média nacional – mostra é que reforma agrária é uma iniciativa de alta complexidade. Apenas um desses motivos, como a falta de escola para os filhos, por exemplo, seria suficiente para a venda ou abandono de lotes por algumas famílias. Com vários motivos juntos, como costuma ocorrer nos assentamentos, seria quase o caso de perguntar por que apenas um terço das famílias tem ido embora.

“Todos os elos da cadeia devem ter responsabilidade no cumprimento desta missão”, diz o professor Ricardo Abramovay, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo. “O agricultor não pode receber a sinalização de que não terá que pagar pela terra ou pelo crédito. O agrônomo não pode assinar o laudo segundo o qual a terra pode produzir e o agricultor está apto para fazê-lo sem que isso seja verdade.”

Além da qualidade do assentamento, também conta a qualidade do assentado. A evasão é menor nos assentamentos onde predominam posseiros ou moradores porque eles conhecem a terra em que estão, ao contrário dos que são levados para lá pelo Incra, muitas vezes para atender às demandas dos acampamentos.

“O assentado tem de ter história de ligação com a terra”, observa Francisco Graziano Neto, ex-presidente do Incra e ex-secretário de Agricultura de São Paulo. “Se não, ele volta para a cidade.”

Mesmo com essa ligação, com dez anos de alguma assistência e até com crédito, os assentados enfrentam enorme dificuldade de andar com as próprias pernas. É isso que mostra o assentamento da Cesp em Presidente Epitácio.

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