No olho do furacão

O leitor da seção Internacional do Estado de S.Paulo está acostumado a receber informações do repórter Lourival Sant’Anna apuradas com segurança e critério em áreas sensíveis do planeta, e redigidas com a dose máxima de isenção jornalística que a condição humana admite.

Esse alto desempenho decorre de muitos anos de prática profissional e de interesse constante pelos temas que envolvem conflitos e outros episódios dramáticos da política internacional.

A mais recente missão de Sant’Anna foi no Máli, onde uma investida de combatentes jihadistas levou o governo da França a enviar tropas para evitar a derrubada do governo.

As fileiras rebeldes abrigam muçulmanos de diferentes origens, principalmente argelinos, tuaregues e negros de variadas etnias, militantes religiosos adeptos da guerrilha e/ou do terrorismo, secundados por contrabandistas, traficantes, sequestradores e ex-mercenários a soldo do então ditador da Líbia Muhamar Kadafi, morto em agosto de 2011.

Entre sectarismo e barbárie

A motivação religiosa entrelaça diferentes graus de fanatismo, sob o manto comum da aplicação de uma sharia – lei islâmica – que varia entre o rigor não muito diferente do que praticam sectários de outras religiões e, na sua vertente mais feroz, a violência absurda que afronta direitos humanos elementares. Em nome de Deus.

O que se convencionou chamar, até aqui, “conflito no Máli” pode abrir um capítulo dolorosamente longo da História, a justificar o envio de um correspondente calejado – embora nunca se saiba com precisão onde será a próxima manifestação do primitivismo humano, atributo de ricos e pobres, cultos e ignaros.

Na noite de sábado (26/1), Sant’Anna voltou a São Paulo com respostas a perguntas que lhe haviam sido enviadas pelo Observatório da Imprensa dois dias antes, quando ainda se encontrava no Máli. No domingo, respondeu a nova pergunta, motivada pela notícia de seu retorno ao país.

Lourival Sant’Anna é autor de Viagem ao Mundo dos Taleban (Geração Editorial, 2002) e de O destino do jornal: a Folha de S. Paulo, o Globoe o Estado de S. Paulona sociedade da informação (Record, 2008).

A seguir, a entrevista.

O potencial da nova Al-Qaeda

Algumas análises preveem que toda uma larga faixa que atravessa a região do encontro Saara-Sahel e corta Mauritânia, Máli, Argélia, Níger, Chade e Líbia se tornará um “Afriganistão”. Isso daria ao “conflito no Máli”, como em geral é chamada a conflagração atual, considerável importância estratégica. Qual é sua percepção sobre essa avaliação?

Lourival Sant’Anna– Depois de uma década de guerra civil, os Grupos Islâmicos Armados foram empurrados a partir de 1999 para a fronteira sul da Argélia e células dessa rede passaram a instalar-se no vasto espaço do Sahel. Em 2001, a Al-Qaeda perdeu seu santuário no Afeganistão e também algumas de suas células passaram a buscar novas bases. Em 2003, uma franquia da Al-Qaeda instalou-se em Taoudeni, 750 km ao norte de Timbuctu. Em 2006, em uma reunião na fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão, esse grupo foi oficialmente denominado Al-Qaeda no Magreb Islâmico. Desde então, ele procura consolidar sua presença nesse espaço, com uma agenda internacionalista e forte influência árabe-argelina. Naturalmente sua expansão territorial tem sido facilitada pela debilidade político-militar dos Estados dessa região – e por causa dela mesma esse espaço foi escolhido. Essas condições levaram ao seu crescimento e, com ele, a dissidências, formando-se grupos que perseguem outros interesses políticos que não a jihad internacionalista e representam outras bases étnicas que não a árabe, embora todos tenham em comum a doutrina wahabista, que emana dos centros de estudos teológicos de Jeddad e que se multiplica nas escolas corânicas e nas mesquitas financiadas pela Arábia Saudita, em sua campanha por projeção e influência sobre os países muçulmanos. Assim, da AQMI surgiram o Ansar Dine, que é composto predominantemente pelos tuaregues (que preferem ser chamados de tamasheqs, o nome de sua língua, porque tuaregue vem do árabe tawarif, esquecido de Deus), e o Mujao, formado principalmente por negros Malineses e por mauritanos (incluindo a etnia moura, cujo nome ganhou relevo nas Cruzadas e na ocupação árabe da Península Ibérica).

Do ponto de vista do Ocidente, e principalmente da Europa, esse desdobramento representa, sim, uma ameaça, considerando a vastidão desse espaço geográfico e a sua proximidade do continente europeu, que a torna muito mais premente do que a presença da Al-Qaeda no Afeganistão ou mesmo no Iêmen.

Acesso controlado

Nesta, como em outras coberturas em áreas conflagradas de que você já participou, quais são as maiores dificuldades? No terreno, devido ao estado de beligerância? Na cabeça do correspondente, que deve lidar obrigatoriamente com uma realidade nova em rápida evolução? Na cabeça dos editores, na sede do jornal?

L.S.– A maior dificuldade desta cobertura foi o controle geográfico do acesso ao teatro de operações por parte dos exércitos do Máli e da França. Somente depois de “limpar” o terreno da presença jihadista e de consolidar a ocupação é que esses exércitos permitem a entrada dos jornalistas. Foi assim em Diabaly e está sendo assim no território norte, onde fomos barrados em um check point 28 km ao sul de Sévaré, na linha de demarcação do conflito. Entre nós, comentamos que ficamos “mal-acostumados” depois realizar coberturas estando geograficamente no território controlado pelos rebeldes, por exemplo na Líbia e na Síria, que proporcionaram um acesso praticamente irrestrito aos locais onde se davam os combates. Exércitos têm como prática exercer um controle severo do acesso à informação, como parte de sua doutrina de gestão do conflito. A informação é um componente da guerra, segundo a doutrina militar. Em 2008, cruzei a linha de demarcação do conflito entre as forças da Geórgia e da Rússia e acabei detido e interrogado durante três horas pelo exército russo. Em Sévaré, a equipe do Le Monde foi detida e teve seu equipamento apreendido pelo exército malinês na semana passada depois de apurar e fotografar denúncias de execuções de tuaregues por militares malineses (eles acabaram liberados e a matéria e foto foram publicadas na edição de sexta-feira, 25/1).

Lidar com realidades novas é parte do nosso trabalho. Temos de ter agilidade intelectual e flexibilidade mental para nos adequarmos a contextos novos e cambiantes. Mas é claro que esse é também um desafio.

Os meios materiais de que você dispõe para cumprir sua tarefa são suficientes?

L.S.– Sim, em minha carreira de correspondente de guerra do Estado de S.Paulo sempre dispus dos meios necessários. Levei dinheiro em cash, como sempre faço, suficiente para pagar minhas acomodações, carro, combustível e motorista. Tenho o equipamento adequado para gravar e editar vídeos. Comprei um modem 3G para conexão de internet de uma empresa instalada no Máli. Poderia, se quisesse, ter levado um telefone via satélite, mas sabia que não seria necessário, e quando não o é ele representa um estorvo.

Leituras constantes

Nos períodos entre coberturas dessa natureza você consegue estudar metodicamente geopolítica e relações internacionais? Quais são as leituras – além da imprensa – que costumam trazer mais benefícios para a preparação do jornalista enviado para cobrir conflitos no exterior?

L.S.– Esse tipo de leitura faz parte da minha rotina. Sou assinante e leitor diário de revistas especializadas e newsletters de think tanks, como Foreign Affairs, Stratfor, Eurasia, Siwps, Ifes etc., cujos especialistas e pesquisadores tratam dos temas de política internacional em todas as partes do mundo.

No caso do Máli, acompanho o assunto desde que os tuaregues ainda estavam nas montanhas do Ghat, no sudeste da Líbia, em 2011, e a região se tornou uma das opções de fuga do Kadafi, que era aliado deles.

Depois, quando eu estava na Turquia, no início de 2012, colegas que cobrem conflitos chamaram a minha atenção para o deslocamento dos tuaregues para o norte do Máli, e li muito e troquei informações com colegas que foram cobrir esse fenômeno no Máli. Falando de uma forma mais geral, nenhum conflito começa sem que eu e outros jornalistas que cobrem política internacional estejamos familiarizados com a situação da região. E esse é um acompanhamento que faço sistematicamente há mais de 20 anos, desde que me tornei redator da Internacional do Estado, em 1990. Depois de tanto tempo, adquire-se uma razoável familiaridade com as questões nas mais diversas partes do mundo, e uma perspectiva que, considerando o período de 20 anos, engloba a história recente, além de obviamente esse acompanhamento incluir o estudo da história de cada uma dessas regiões.

Quando estamos envolvidos na cobertura, nossa condição de fazer leituras mais extensas é prejudicada pela falta de tempo, pelos problemas de segurança e logística e pela precariedade da conexão de internet. Mas, com o conhecimento de fundo que já se tem, leituras pontuais e consultas rápidas a bancos de dados (que tenho no meu computador, incluindo matérias minhas e pesquisas e leituras anteriores) e a verbetes de enciclopédias de história e de ciência política são suficientes para se ter presente a informação necessária para contextualizar os novos desdobramentos dentro de um cenário que muitas vezes apresenta situações inteiramente novas, e ainda não descritas na literatura.

Hora de voltar

Como é tomada a decisão de voltar? Quais são os fatores levados em conta? Você teria alguma sugestão para evitar que entre um episódio e outro a história dos países ou locais afetados permanecesse inteiramente ausente do jornal?

L.S.– Encerramos uma cobertura quando avaliamos que conseguimos apurar o suficiente para produzir um material que dê sentido ao que está acontecendo em um lugar, e os desdobramentos do futuro imediato não mudarão esse quadro que estamos captando. Em geral as coberturas são encerradas com um material que procura dar esse sentido, como o que publicamos na edição de domingo (27/1), nas páginas A11 a A14 [edição de 23h15].

Seguimos então acompanhando pelas agências internacionais, jornais e revistas dos quais temos o direito de publicação, ou que podemos comprar, eventualmente. Até avaliarmos que aquela situação entrou em nova fase, que há novos elementos importantes, que merecem uma nova apuração da nossa parte. Aí vamos de novo.

Claro que tudo isso vem calibrado pelos limites dos nossos recursos materiais e humanos. No caso do Estado, a Internacional tem uma grande tradição e prestígio, e consideramos que nosso leitor tem um interesse intelectual universal pelos grandes acontecimentos, mesmo que eles não tenham uma relação direta com o Brasil. É bem esse o caso do Máli. O Brasil praticamente não tem negócios lá, com exceção de algumas obras de infraestrutura por construtoras brasileiras e o projeto Cotton-4, para a formação e melhoramento da cultura do algodão, conduzido pela Embrapa. Mas, como você mesmo apontou, o conflito no Máli inaugura uma nova dinâmica, uma nova estratégia e uma nova configuração geográfica do jihadismo, e precisávamos mostrar isso para os nossos leitores.

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