Por Daniela Osvald Ramos – Doutora em Ciências da Comunicação (ECA-USP), é professora de Novas Tecnologias da Comunicação na Faculdade Cásper Líbero
Introdução
Graduado em jornalismo pela Universidade Federal de Goiás e mestre pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, o repórter especial Lourival Sant’Anna iniciou sua carreira no O Estado de São Paulo em 1990, como redator de Internacional. Passados 21 anos, sua trajetória compreende a cobertura de conflitos em mais de 40 países, entre eles a Palestina, Afeganistão, Iraque, Irã, Líbano, e, recentemente, Egito, Tunísia e Síria. Também é autor de dois livros: Viagem ao Mundo dos Taleban (Geração Editorial, 2002) e O Destino do Jornal (Editora Record, 2008), este sua dissertação de mestrado.
A informação é fator decisivo numa guerra. Sant´Anna testemunhou o desenrolar das mudanças políticas no Oriente Médio nesta época na qual a comunicação digital é um elemento cada vez mais determinante em todos as esferas da sociedade. Se a transformação mental foi introduzida nos lares árabes por dois canais de televisão a cabo, principalmente, o Al-Arabiya e Al-Jazeera, foi por meio das redes sociais que os jovens se reuniram para efetivamente mostrarem ao mundo sua insatisfação com as ditaduras. Ou seja, as mídias operam na cultura como sistemas interligados de informa- ção, à semelhança de um ecossistema no qual a introdução de novas espécies altera sua configuração original.
Disseminar correspondências diplomáticas via internet, como fez Julian Assange, é outro exemplo das mudanças pelas quais passamos. “Quando Osama Bin Laden utilizou aviões como mísseis e os transformou em armas de guerra, ele rompeu limites, um acordo da civilização, de que aviões são meio de transporte. Quando isso acontece, a civilização se modifica, saímos de uma certa ingenuidade que havia antes. Acho que isso aconteceu com a correspondência diplomática”, diz, a respeito do Wikileaks.
E, na era digital, fazer política não difere muito de vender um produto: ”Os candidatos são como produtos, sabão em pó, e são capazes de se contradizer, se necessário. Eles não têm convicções. O político moderno não tem pensamento, não tem ideias, princípios. Ele se ajusta ao que as pesquisas de opinião pedem. E a internet tem sido um veículo disso”. Leia a seguir a entrevista completa.
Communicare – Como podemos entender o que a internet causou nos países nos quais você cobriu conflitos nos últimos cinco anos, em especial a Primavera Árabe? Essas mudanças são perceptíveis na prática?
Lourival Sant´Anna – Numa ordem cronológica, temos o Irã, com conflitos em junho de 2009, chamados de Primavera do Teerã, e o Iraque em março de 2010. O que acontece é que a internet, o Facebook, principalmente, e o Twitter, também, são usados para as pessoas se mobilizarem e se encontrarem. A responsável pela transformação mental é a televisão, não é a internet. Do ponto de vista do conteúdo, são responsáveis os canais Al–Arabiya e Al-Jazeera, principalmente, e outras dezenas de canais noticiosos, das mais diversas correntes, como o Hezbollah, no Líbano. Esses canais entram nos lares dos árabes, e dos iranianos também. No caso dos árabes, esses canais entraram livremente nas casas na Líbia, Tunísia, Egito e Palestina.
Eles trouxeram a notícia de que existem outras formas de organização política. E, mais que isso, ajudaram a abortar operações de propaganda, que antes transcorriam incólumes. Por exemplo, houve um protesto em Londres que foi contra o corte de bolsas de estudo e, principalmente, contra o aumento da anuidade nas universidades. A televisão estatal na Líbia pegou essas imagens e disse que os ingleses estavam protestando contra a participação da Inglaterra na operação da Otan. Mas os canais Al-Arabiya e Al-Jazeera mostraram que não era bem assim. Isso é muito importante numa guerra. Isso pode ser decisivo numa guerra. Por exemplo, agora, em Bani Walid, as pessoas estavam saindo da cidade, fugindo, porque a rádio estatal local dizia que Bani Walid estava cercada por islâmicos fundamentalistas, que a Al Qaeda estava cercando a cidade. Mas comprando uma antena que custa dez dólares e o sinal é grátis, sabe-se que a cidade é um dos últimos redutos do Kadafi. Isso muda completamente o estado da guerra. E isso tem acontecido.
Communicare – E no Irã?
LS – Estive agora por coincidência com o presidente da Press TV, a TV estatal iraniana e ele disse que não existe TV a cabo no Irã. Ele não me falou, mas sei que existem algumas antenas clandestinas, que podem levar a pessoa à morte se forem descobertas. E existe um complicador, que é o fato de os iranianos não falarem árabe. Então, esse fenômeno dos canais árabes não penetra no Irã. Mas lá é possível sintonizar a BBC, a CNN, e a elite iraniana fala inglês. Mas também não é atingindo a elite que se muda a equação política dentro de um país como esse. Mesmo assim, a Primavera de Teerã, em 2009, foi um fenômeno também impulsionado pela classe média, de qualquer maneira.
No início de setembro de 2011, um hacker iraniano entrou no sistema de quatro certificadoras de internet, uma delas na Holanda, que reconheceu que foi mesmo invadida. Ele roubou certificadores usados pelo Google, pelo Yahoo, e outros sites e entregou para as autoridades iranianas que, com isso, provavelmente, calcula-se, vão ser capazes de violar o segredo de e-mails de 300 mil pessoas no Yahoo. Isso é muito grave num país como o Irã, pode levar à morte.
Communicare – E no Egito e Tunísia?
LS – Tudo começou, no Egito, com uma página do Facebook que dizia “Somos todos Khaled Said”. Porque Khaled foi um rapaz de 28 anos que estava numa lan house quando foi abordado por policiais que queriam que ele se identificasse. Ele falou “primeiro vocês precisam se identificar”. Apanhou da polícia até morrer. Então, isso é muito emblemático na questão da internet, porque a partir daí criou-se essa página no Facebook e começou-se a discutir. Primeiro, o papel da polícia. É claro que isso transbordou para outras questões políticas. Wael Ghonim, egípcio, estava à frente disso, sendo o gerente de marketing do Google para o Oriente Médio. Com relação à mobilização, nessa e em outras páginas do Facebook foi-se falando “vamos fazer uma manifestação”, e isso foi muito antes da revolução na Tunísia. Portanto, a revolução egípcia é um fenômeno anterior ao tunisiano, ao contrário do que se pensa. Mas a manifestação foi marcada para 25 de janeiro e a Tunísia estourou no início de janeiro por causa de um homem que se autoimolou, uma história fortíssima, ele tinha graduação na universidade, não tinha emprego e estava trabalhando como camelô e tomaram as coisas dele. Então ele pôs fogo em si mesmo. Acho que qualquer pessoa compreende por que ele pôs fogo em si mesmo.
O que eu sempre gosto de opinar nessa questão é que as coisas nascem no mundo real. Khaled Said foi espancado até a morte, outro homem se imolou. Na Líbia, parentes dos presos políticos chacinados na prisão de Abu Salim, em 1996, estavam preparando uma manifestação quando o advogado dessas famílias todas, Fathi Terbil, foi preso preventivamente, às vésperas do protesto. Essa manifestação foi então engrossada pelos advogados e pelos juízes da Alta Corte de Benghazi, na Praça dos Mártires. São fatos concretos, mas a mobilização para essa manifestação foi feita no Facebook. E, posteriormente, surgiram muitas páginas no Facebook.
Quando começou a revolução, em Tripoli, nove parentes do rei Idris Sanusi, derrubado por Kadafi, todos jovens, irmãos e primos entre si, foram presos, para justificar uma das narrativas do regime para essa revolução, que era uma conspiração para trazer de volta a monarquia. Conversando com eles, falei “mas vocês fizeram alguma coisa?”, e eles “eu não fiz nada”, “eu não fiz nada”. Aí um deles falou “ah, eu não fiz nada, eu só tinha uma página no Facebook chamada ‘Fora, Kadafi’”. A minha análise é de que a maior serventia do Facebook e do Twitter é para a organização: “vamos nos encontrar em tal lugar, tal hora e tal dia”. E claro, o Facebook, como todos nós sabemos, é um lugar em que você se coloca. E, naturalmente, as pessoas se colocavam. Eu me lembro de um médico que falou que “no início da revolução, dos protestos, eu escrevi na minha página do Facebook ‘nós precisamos de reformas. Esse regime precisa de reformas’. Eu não queria a queda do Kadafi, eu só achava que precisava de reformas. Depois de tudo o que aconteceu, hoje eu preciso que o Kadafi caia”. que se autoimolou, uma história fortíssima, ele tinha graduação na universidade, não tinha emprego e estava trabalhando como camelô e tomaram as coisas dele. Então ele pôs fogo em si mesmo. Acho que qualquer pessoa compreende por que ele pôs fogo em si mesmo.
Communicare – É preciso ver que e-mail já proporcionava isso, mas não em escalade rede…
LS – Isso. Acho que o Facebook e o Twitter permitem essa abertura. Enfim, eles são sistemas mais abertos. As pessoas que se interessam podem buscar, não é fechado. E isso fez uma diferença grande.
Communicare – Você falou da TV, é interessante notarmos esse ecossistema dos meios de comunicação, que é daí que surge o novo.
LS – Só mais uma questão: tanto na Tunísia quanto no Egito e na Líbia, a internet foi derrubada e os celulares também. Encontrei com dois jornalistas da revista alemã Der Spiegel, um fotógrafo e um repórter de texto. Eles ficaram duas semanas na Síria, escondidos (não estavam sendo fornecidos vistos para jornalistas). Perguntei ao fotógrafo: “como você fez com o seu equipamento?”, e ele “não levei equipamento”. “Telefone satélite?”, “Não, não levei nada, a gente só publicou depois de sair (da Síria)”. Em revista, você pode fazer isso… Ele falou: “meu plano foi o seguinte: eu levei uma câmera de turista. Estava lá como turista, levei uma câmera pequena. Só que as manifestações são de noite, e existem franco-atiradores no topo dos edifícios do governo que buscam quem está com uma luzinha, celular ou câmera. Se os vizinhos vissem aquela manifestação, tudo bem, não seria um problema. Mas o resto do mundo seria um problema. Ligava minha câmerazinha e falava ‘agora eu vou morrer’, porque tinha aquela luzinha no meio da escuridão”. Então, existe toda essa questão da fotografia digital, que é viral. No meio da guerra na Líbia, chegavam homens com celular e falavam “você tem imagens para trocar?”. Trasmitiam-se as imagens por bluetooth de celular para celular. Na Síria, isso é vital, também no Yêmen e Bahrein, que são países fechados para a imprensa. É a única forma de contrabandear para fora do país imagens do que está acontecendo lá. De forma viral, pelo Bluetooth.
Communicare – Você vê, a médio e longo prazo, os governos no mundo querendo ter mais controle sobre a internet? Por exemplo, nos conflitos com os riots na Inglaterra, neste ano, o governo cogitou cortar o acesso à internet e às mensagens enviadas por celular.
SL – Vou responder à sua pergunta de uma forma histórica. Nos últimos dez anos, uma parte do orçamento de defesa da China e dos EUA, e de países europeus também, tem sido destinada à guerra eletrônica. Porque, na guerra convencional, o primeiro objetivo é bombardear as salas de controle e comando. É como se você destruísse o cérebro. Na Líbia, algumas brigadas como, por exemplo, em Ashdala, no leste, estavam atuando sem controle e comando, porque a Otan cortou a comunicação. Fazer isso com bombas é mais difícil, porque se destroem alvos civis. O controle de comando do Kadafi estava debaixo de um estacionamento de um bar de Abu Salim. São bunkers. Se é possível atacar os centros de comando eletronicamente, é muito mais custo-benefício. Muitos hackers têm sido capturados, cooptados e trazidos para dentro de agências de inteligência militar, que têm atuado nesse sentido. E acho que a gente ainda não viu nada. Acho que isso vai crescer muito. Com relação à Inglaterra, Londres é provavelmente a cidade mais vigiada do mundo. Mas outras cidades do interior da Inglaterra também. Em cada esquina há uma câmera de circuito interno, que é usada pela polícia. Londres foi um dos lugares em que o Google Street começou. Mas os ingleses falaram (em relação à possibilidade de controle da internet): “Já temos invasão de privacidade suficiente”. E há um tremendo problema legal aí.
Communicare – É possível dizer que a digitalização da cultura, no sentido em que estamos falando, muda o jeito de fazer política?
LS – Com certeza. Eu cobri a eleição americana, fiquei o segundo semestre de 2008 nos EUA. Até hoje eu recebo e-mails do John McCain, da mulher dele, do Obama, da mulher do Obama, da Hillary Clinton… A campanha, principalmente do Obama, e isso se tornou um caso clássico, foi feita em função da internet. A arrecadação foi recorde. Na época, vinham e-mails em que ele colocava questões políticas do momento, da conjuntura da campanha, isso até na época das primárias, antes de ele ser o candidato. E dizia “olha, está acontecendo isso, isso e isso, você pode dar 50 dólares? É um momento difícil”. Deu certo. Na democracia americana há uma tradição de doações, que tem uma conotação política muito forte. Quando os políticos americanos falam em doação na televisão, vira uma bola de neve. Tem uma grande repercussão sobre o público americano, que tem orgulho de dizer “eu votei com o meu dinheiro”. Eu acho que a política continua sendo a política, assim como a guerra continua sendo a guerra. Mas os meios mudam a forma de fazer as coisas. A aceleração da informação e do impacto dela ricocheteia e tem muita influência sobre a política, porque antes o discurso era mais vertical. Antes era possível, com um discurso preparado, passar uma mensagem mais homogênea, mais vertical. Hoje interage-se o tempo inteiro.
Communicare – O que é o WikiLeaks?
LS – Eu acho que o WikiLeaks é uma quebra nas normas de convívio, nas normas de comportamento. Uma coisa é flagrar um ato de corrupção. Outra coisa é violar uma correspondência diplomática. Mas o WikiLeaks tem vários aspectos. O que mais me impactou até hoje e que considero uma contribuição jornalística muito importante foi o vídeo do bombardeio no Iraque, daquela operação por helicóptero. Aquilo realmente desnudou a incrível irresponsabilidade das forças armadas americanas. Teve coisas desse tipo também no Afeganistão. Eu acho que isso é jornalismo, da mesma maneira aquele escândalo da prisão de Abu Ghraib no Iraque, anos antes, aquelas fotos. Isso é muito pertinente, isso é de interesse público.
Tenho dúvidas se está dentro da nossa ética distribuir correspondências diplomáticas. Mas, de qualquer maneira, vamos passar a conviver com isso. O mundo ficou tão dependente de todas essas formas de comunicação que se tornou, ao mesmo tempo, vulnerável. Eu faria uma analogia com a questão do avião. Quando Osama Bin Laden utilizou aviões como mísseis e transformou-os em armas de guerra, ele rompeu limites, um acordo da civilização, de que aviões são meio de transporte. Quando isso acontece, a civilização se modifica, saímos de uma certa ingenuidade que havia antes. Acho que isso aconteceu com a correspondência diplomática. É isso que caracteriza o terrorismo, não respeitar normas da guerra. E, propositalmente, atingir um alvo civil. Mas quando se mexe com sistemas de transportes ou com sistemas de comunicação, aí se transpôs um limite. E o WikiLeaks faz isso. E proclama que não há regras. Os fins justificam os meios. Vejo benefícios no WikiLeaks, mas tenho dúvidas do balanço entre prejuízos e benefícios. Como é que fica quando alguém fura a fila, quando cruza o sinal vermelho? O que é que ele introduziu na sociedade? Um elemento de barbárie.
Communicare – Barbárie digital, como quando se colocam informações falsas sobre uma pessoa no Facebook, Orkut?
LS – Uma traquinagem. Cobri os vinte anos da queda do muro de Berlim em 2009 e senti dificuldade em fazer entrevistas on the record com jovens entre 18 e 30 anos de idade.É uma coisa que um jornalista nunca enfrenta, você tem problemas em estar on the records com autoridades, diplomatas, militares, empresários falando coisas sensíveis. Uma moça me perguntou: “essa entrevista vai estar na internet?”. Eu respondi como sempre, com todo o entusiasmo: “sim, claro!”, porque achei que ela queria mostrar para os amigos, para a mãe. “Ah, então eu preferiria que não saísse meu nome”. “Estou tentando limpar meu nome da internet”. Eu vi isso várias vezes, até que alguém me explicou que, na Alemanha, os jovens não conseguem emprego formal se o recrutador faz uma pesquisa e encontra imagens deles bêbados. O que é uma coisa alemã, beber cantando e fazendo besteira. Mas eles não conseguem tirar isso da internet e não conseguem emprego formal. Pode acontecer no nosso país, também. A internet dá ressonância para um tipo de controle moralista e pudico, puritano. Emoldura a vida pública das pessoas num limite mais estreito, que responda ao conservadorismo mais extremado. Porque a sociedade tem diversos raios de aceitação, de tolerância moral e social. Na medida em que a questão se torna aberta e há um escrutínio milimétrico da vida de todos, a aceitação social se circunscreve ao mínimo denominador comum. E aí se chega a uma situação orwelliana. Há o Grande Irmão que controla. Por que uma pessoa que, na adolescência, foi filmada numa cena de bebedeira, anos depois não pode ser aceita numa empresa? A única diferença entre ela e aqueles outros alemães que trabalham na empresa é que esses outros alemães não têm imagens gravadas no YouTube. Se houver preocupação com a questão do alcoolismo, é possível para a empresa colocar um tipo de exame específico, psicológico, em seu processo de seleção. Mas do que é que nós estamos falando, é de alcoolismo? Não, é de imagem. O que essa empresa não quer é que, no mercado, em um momento de vulnerabilidade, se associem essas coisas a ela. Porque nós não estamos falando sobre o domínio da internet, nós estamos falando sobre o domínio do marketing, inclusive na política. Hoje, a política é dominada por estratégias mercadológicas. Os candidatos são como produtos, sabão em pó, que são capazes de se contradizer se necessário. Eles não têm convicções. O político moderno não tem pensamento, não tem ideias, princípios. Ele se ajusta ao que as pesquisas de opinião pedem. E a internet tem sido um veículo disso. As pessoas que são guiadas por princípios não conseguem se ajustar a esse sistema. Em resumo, nós elegemos atores.