Agência Nacional de Saúde Suplementar tenta conciliar as leis de mercado com o interesse público
A missão da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não é de causar inveja. A dificuldade de conciliar as leis de mercado com o interesse público, de zelar ao mesmo tempo pela sustentabilidade das empresas e pelos direitos dos consumidores, é um desafio para todas as agências reguladoras.
No setor da saúde privada, o único consenso que une empresas, médicos, consumidores e reguladores é o de que essa conciliação é impossível. A agência regula o irregulável. E os precedentes não ajudam.
“A ANS chegou num mercado já muito estabelecido, com décadas de práticas abusivas das empresas”, recorda Andrea Salazar, coordenadora de campanhas do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). “Ao contrário das agências de energia elétrica e de telecomunicações, ela tem de se impor num ambiente contaminado.”
Há dez anos, uma entidade internacional pediu à jurista Sueli Gandolfi Dallari, do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo, um estudo sobre o sistema jurídico de saúde no Brasil, para orientar multinacionais que queriam entrar no mercado brasileiro de planos de saúde. “Cheguei à conclusão, na época, de que você punha o que quisesse no contrato”, diz a professora. “Não havia requisitos. Era terra de ninguém.”
“A credibilidade dos contratos era baixíssima antes da regulação”, lembra Regina Parizi, presidente do Conselho Regional de Medicina (CRM) de São Paulo. “Havia muitas coisas nas entrelinhas.” Sem regulamentação, “o máximo que a sociedade conseguia era reverter situações desfavoráveis no Judiciário, que tem suas prioridades e seu tempo, que nunca é o da área de saúde”, diz Regina, conselheira e representante do Conselho Federal de Medicina na Câmara de Saúde Suplementar, órgão consultivo da ANS.
Uma resolução singela da agência, baixada em abril, dá uma medida da precariedade do setor: ela obriga as operadoras a terem médico responsável por passar informações para a agência. “Por incrível que pareça, muitos planos não tinham médico-responsável, só pessoal administrativo”, assusta-se Mário Scheffer, representante dos usuários no Conselho Nacional de Saúde (CNS). “O CRM ia punir quem?”
O presidente da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge), Arlindo Almeida, reconhece que o setor era extraordinariamente desorganizado antes da regulamentação – e, em parte, continua sendo. “Foram impostas exigências muito grandes sobre as empresas, que têm diferenças enormes entre elas.” Vão de uma Intermédica e uma Amil, com 1 milhão de associados cada, até pequenas empresas sem muito profissionalismo.
“A lei pega as empresas na desorganização, pois pretende que os planos tenham reserva técnica, provisões, capital mínimo, etc., e isso causou grande impacto no setor”, atesta o representante dos convênios, que movimentaram no ano passado R$ 5,65 bilhões.
As grandes empresas também têm sofrido, diz Almeida, por causa do controle de preços. “As outras agências também regulam os preços, mas concedem grandes aumentos”, compara o presidente da Abramge.
O reajuste anual ficou em 5,42% em 2000 e em 8,71% em 2001. “Este ano ainda foi razoável, mas já vinha muito defasado”, queixa-se Almeida. Só de tributos, o aumento teria sido de 3% no ano passado. “Mais a inflação, daria 10%.”
Antes da regulação, a variedade de coberturas também era virtualmente infinita. Havia planos cujos contratos tinham algumas linhas estipulando o que cobriam, seguidas de páginas e mais páginas com tudo o que não cobriam. “A lei transformou o plano de saúde em um produto acabado, quase sem restrições”, afirma Almeida.
Os contratos firmados a partir de 1.º de janeiro de 1999 devem cobrir todas as patologias do Código Internacional de Doenças. A lei não é retroativa. Pela interpretação da ANS, ficam de fora também os contratos coletivos, firmados por empresas para seus funcionários ou por entidades – como sindicatos – para seus associados. Segundo a Abramge, dos 18,4 milhões de usuários de planos de saúde, 14,3 milhões, ou 78%, participam de planos coletivos.
Além dos convênios, há os seguros, as cooperativas (tipo Unimeds), as autogestões (como as Classes Laboriosas) e os filantrópicos (como as Santas Casas). No total, são 29 milhões de beneficiários de planos de saúde. Desses, apenas 6,4 milhões (22%) estão de acordo com a lei de 1998 e 876 mil são odontológicos. Os 21,7 milhões restantes continuam nos termos anteriores aos da regulamentação.
“A ANS ainda não disse a que veio”, sentencia Mário Scheffer, que representa o Conselho Nacional de Saúde na Câmara de Saúde Suplementar. “Achamos absurdo toda essa estrutura para cuidar de uma parte tão pequena dos planos.”
Montone argumenta que os contratos velhos não estão fora da regulação: “Ela atinge todo o setor, mas com características diferentes.” A operação das 1.700 empresas que atuam no mercado é regulada com a imposição de regras de garantias financeiras e a obrigação de cumprir o contrato firmado.
Além disso, a lei retroagiu – motivando ação direta de inconstitucionalidade, em tramitação no Supremo Tribunal Federal – nos seguintes itens: controle de preços; proibição do rompimento unilateral do contrato; a inadimplência como causa de rompimento, mas com 60 dias de atraso; inclusão automática do filho recém-nascido; proibição da suspensão da internação hospitalar, tanto normal quanto de UTI, e do reajuste para pessoas com mais de 60 anos e 10 anos de plano.
O presidente da ANS diz que o “inferno regulatório” da agência é o fato de que só 22% dos contratos têm a garantia do atendimento integral. A não ser pelos dois anos de carência para doenças preexistentes, a lei não permite exceções na cobertura dos dois tipos de planos previstos: o ambulatorial e o hospitalar.
Os contratos antigos podem excluir tipos de cirurgias, por exemplo, e a agência não tem poder de obrigar a operadora a cobri-las. Alguns usuários têm ganhado essas causas na Justiça, com base no Código de Defesa do Consumidor e na lei que regulamentou o setor.
“O juiz entende que, se a lei diz que a assistência à saúde tem que compreender aquela integralidade, não tê-la é ilógico”, reflete Montone. O cidadão é atendido, mas, nesse meio-tempo, a operadora consegue cassar a liminar e o hospital fica com a conta. “Em muitos casos, o hospital tenta cobrar do usuário e nós vamos para cima do hospital e da operadora”, diz o presidente da ANS, provando que “inferno regulatório” não é força de expressão.