O muro de Berlim caiu há quase três décadas, mas a política segue dominada pela divisão direita/esquerda. Daí que, na maior parte das democracias, os políticos que tentam ocupar o centro — o ponto privilegiado do qual se atrai o voto da “maioria silenciosa” — são observados com uma lupa de suspeição, na tentativa de seus adversários de desmascará-los, provando que estão do lado “errado”, seja à direita ou à esquerda. O novo gabinete francês espelha a ambição do presidente Emmanuel Macron de se manter no centro, para angariar o máximo apoio na Assembleia Nacional que será eleita em junho, ao mesmo tempo em que não abre mão de seu projeto de reformas econômicas.
Edouard Philippe, o primeiro-ministro nomeado por Macron na segunda-feira, e que nesta quarta divulgou a composição de seu gabinete, vem do partido de direita Os Republicanos. Mas, no interior do partido, pertence à corrente moderada liderada pelo ex-primeiro-ministro Alain Juppé, considerado de centro-direita. Nas primárias do partido, em novembro, Juppé foi derrotado pelo também ex-primeiro-ministro François Fillon, que ficou em terceiro lugar no primeiro turno da eleição presidencial, dia 23 de abril, com 20% dos votos — encostado na segunda colocada, a ultra-nacionalista Marine Le Pen, que recebeu 21%.
Ao nomear Philippe, Macron procurou aprofundar as divisões nos Republicanos. Essa intenção ficou clara já na mudança do nome de seu movimento, de “Em Marcha!” para “A República em Marcha (REM)”, de modo a remeter ao nome do principal partido de direita.
Cerca de 20 deputados dos Republicanos assinaram um manifesto no qual pedem que o partido e seus aliados de centro-direita aceitem a “mão estendida” de Macron e abracem “a transformação política” em andamento na França. A direção do partido ameaçou com expulsão quem declarasse apoio ao novo presidente.
Os Republicanos, assim como os comunistas que apoiaram Jean-Luc Mélenchon, quarto colocado no primeiro turno, com 19%, estão empenhados em eleger uma grande bancada na Assembleia Nacional, para fazer o primeiro-ministro e assim formar um governo de coabitação com Macron. Para isso, querem se diferenciar do movimento criado pelo presidente em abril do ano passado.
Ex-membro do Partido Socialista e ex-ministro da Economia do governo de François Hollande, Macron tem um pouco mais de facilidade de canibalizar a sua antiga legenda, que saiu em frangalhos do primeiro turno, com modestos 6% dos votos para o candidato governista, Benoît Hamon, que amargou o quinto lugar.
“Eu sou um homem da direita”, definiu-se Philippe ao tomar posse na segunda-feira no palácio de Matignon, residência oficial do primeiro-ministro. Mas acrescentou que tem respeito pelos políticos de esquerda, e que seu objetivo é “o bem comum”.
A primeira rusga de Philippe, prefeito da cidade portuária de Le Havre, é com os poderosos ambientalistas franceses: entre 2007 e 2010 ele foi vice-presidente de Relações Públicas (VRP) da Areva, multinacional francesa do setor de energia nuclear. “Essa nomeação é extremamente inquietante diante do que está em jogo atualmente”, afirma uma nota da rede Sair do Nuclear. “Nenhuma complacência da parte do Executivo em relação à indústria nuclear será tolerada. A nomeação de um antigo VRP da Areva faz temer o pior e diz muito sobre o interesse de Emmanuel Macron pela transição energética.”
A formação de Philippe, de apenas 46 anos de idade (Macron é o presidente mais jovem da França moderna, com 39), seguiu o mesmo roteiro do novo presidente e em geral da elite francesa: o instituto de ciência política Sciences Po e a Escola Nacional de Administração (ENA). Ele chegou a pertencer à corrente social-democrata do PS antes de aderir à direita. O que também não deixa de ser um percurso comum. Esse é seu primeiro cargo no governo nacional e é pouco conhecido fora da região da Normandia — o que também é consistente com a promessa de Macron de renovação na política.
Do outro lado do espectro, Macron trouxe para o estratégico cargo de ministro do Interior — responsável pela segurança interna e pela realização das eleições — um histórico líder socialista, Gérard Collomb. Um dos coordenadores da campanha de Macron, Collomb foi responsável por conseguir as assinaturas de dirigentes do PS para apoiar a candidatura do presidente pelo movimento Em Marcha!. A direção do partido, que tinha seu próprio candidato, tentou coibir a adesão a Macron. Eram necessárias 500 assinaturas. Macron conseguiu 1.829.
Prefeito de Lyon, e um dos poucos políticos franceses a assumir publicamente sua filiação à maçonaria, Collomb também teve um papel importante na campanha depois do segundo turno, em 7 de maio, para que deputados de diversos partidos se lançassem à reeleição na lista da REM. A REM pode aceitar candidatos filiados a outros partidos, desde que assumam o compromisso de seguir seu programa. Essa é a vantagem de ser um movimento. A desvantagem é que lhe falta uma máquina partidária para disputar as eleições dos 577 deputados, que serão realizadas em dois turnos, nos dias 11 e 18 de junho. O voto é distrital, e o candidato que não obtiver mais da metade dos votos em sua circunscrição disputará com o segundo colocado no segundo turno.
Já para os ministérios da Economia e do Trabalho, Macron e Philippe escolheram pessoas claramente comprometidas com as reformas que pretendem implementar — embora elas só vão deslanchar depois da eleição da nova Assembleia Nacional, que, dependendo de seu resultado, poderá levar a uma mexida no gabinete para formar maioria de governo.
Bruno Le Maire, de 48 anos, novo ministro da Economia, chegou a disputar as primárias presidenciais dos Republicanos, com o slogan “a renovação é Bruno”, mas teve apenas 2,38% dos votos. Ministro da Alimentação, Agricultura e Pesca entre 2009 e 2012, no governo do direitista Nicolas Sarkozy, Le Maire defende o fim do assistencialismo do Estado, com medidas polêmicas vigorosamente rechaçadas pela esquerda, como a privatização da agência de emprego do governo, Pôle Emploi, e um teto para a soma de todos os benefícios sociais, para que não ultrapassem dois terços do salário mínimo de 1.500 euros.
A nova ministra do Trabalho, Muriel Pénicaud, é uma das nove mulheres no gabinete de 18 ministros, dividido por igual entre os sexos, como prometera Macron, que além disso reduziu o número de pastas, antes 35. Ela foi funcionária de carreira desse ministério, antes de passar para a iniciativa privada em 2002, quando se tornou diretora de Recursos Humanos da multinacional francesa de software Dassault Systèmes.
Seis anos mais tarde, ela passaria a diretora da mesma área na Danone, onde ficou por mais cinco anos. Nesse período, o governo do então primeiro-ministro Fillon, dos Republicanos, encomendou-lhe um estudo sobre “bem-estar e eficácia no trabalho”, que ela escreveu em conjunto com um dirigente da Confederação Geral do Trabalho (CGT), central sindical de esquerda. Em 2015, Pénicaud passou a dirigir a Business France, que realiza feiras para promover empresas francesas.
Por sua experiência e sensibilidade com as demandas da iniciativa privada, sua nomeação foi bem-recebida no Movimento das Empresas da França (Medef), o maior grêmio empresarial do país. “Sua nomeação é uma excelente notícia para o diálogo social”, tuitou Laurence Parisot, ex-dirigente do Medef.
Pelo mesmo motivo, o novo gabinete foi rejeitado pelo Partido de Esquerda. Num comunicado assinado por seus dirigentes Danielle Simonnet e Eric Coquerel, o partido chama o novo gabinete de “produtivista e nucleolatra” (que venera a energia nuclear). “As personalidades de frente vêm todas da esfera de direção das empresas”, protestam os esquerdistas, que apoiaram Mélenchon. “O Medef está esfregando as mãos por antecipação. O projeto de Macron é de direita e de direita.”
Em entrevista a EXAME Hoje, Hubert Kempf, professor de economia da Escola Normal Superior Paris-Saclay, explicou que a reforma trabalhista será uma continuidade da anterior, a Lei Macron, apresentada pelo próprio presidente, quando era ministro da Economia, em 2015. Duas medidas que não foram adotadas na época serão retomadas agora.
A primeira é a prioridade para as negociações entre patrões e empregados na esfera das empresas, em detrimento dos acordos setoriais. Segundo Kempf, isso será aprovado “sem grande dificuldade política, mesmo que a oposição de esquerda se mobilize contra a medida”.
Já a segunda etapa mexe com os direitos trabalhistas, incluindo os custos no caso das demissões, que, na visão dos reformistas, inibem as contratações e estão entre as razões para o alto índice de desemprego, de 9,7%. “Essa reforma é mais espinhosa”, descreve o especialista.
Há o que ele chama de “razões de fundo”: o grau de liberdade para as negociações entre empregados e patrões; o grau de paternalismo e de proteção que o Estado deve assegurar; e quais os princípios da reforma, “levando em conta as evoluções do mercado de trabalho, em particular devido à informatização”. E há as questões “estratégicas”: que papel reservar aos sindicatos; como e o que negociar com eles; e se a reforma precisará ser aprovada à força, ou seja, sem se chegar a um consenso com os representantes dos trabalhadores. A Constituição francesa permite ao chefe de governo decretar o fim do debate no Parlamento e sancionar os projetos. O ex-primeiro-ministro Manuel Valls teve de fazer isso duas vezes: para aprovar a Lei Macron e, no ano passado, a Lei Khomri, reforma postulada pela então ministra do Trabalho, Myriam El Khomri, sufocando assim a resistência da esquerda, incluindo seu próprio PS.
Dias difíceis virão.
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