Desilusão no Cujubim

CUJUBIM (AM) – O sol nasce sobre o Rio Jutaí, tingindo as ondas formadas pela canoa de um rosa metálico que imita a tonalidade do boto cor-de-rosa, uma das tantas espécies em extinção noutras partes da Amazônia e abundantes aqui. Na frente de sua cabana de palha, José Lopes dos Santos Bento tem a espingarda no ombro e o olhar fixo no horizonte, por entre as árvores altas da floresta. Duas onças estiveram rondando de novo a sua palhoça, e ele acordou vigilante. Depois da curva do rio está o tesouro guardado por Zé Lopes: uma praia de areia branca, com 28 plaquinhas de madeira, cada uma indicando, a lápis vermelho, a data da desova dos tracajás – pequenas tartarugas também em risco de extinção, cobiçadas por sua carne e seus ovos. Outras plaquinhas ainda esperam por uma data, para a desova de tartarugas grandes. “No ano passado, foram 12 ninhadas de tartaruga, e neste ano confesso que também serão 12”, calcula Zé Lopes. “Não sei se as onças estão procurando tracajá ou eu. Se vieram para me comer, vão ter que fazer uma forcinha.”

Mas o ânimo de Zé Lopes para guardar o “tabuleiro” que leva seu nome está chegando ao fim. Ele foi escolhido para a tarefa na comunidade do Pirarucu, a mais distante das quatro que povoam a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Cujubim. Em troca, deveria receber, do governo do Estado do Amazonas, um “rancho” de R$ 200 mensais, durante os três meses da temporada de desova (julho, agosto e setembro). O dinheiro não veio, mas Zé Lopes continua firme. “A minha parte estou cumprindo”, orgulha-se o acreano de 72 anos, que aos 12 veio de Cruzeiro do Sul para o oeste do Amazonas. “Não tenho nada: café, açúcar, nada”, enfatiza o homem, que nunca se casou nem teve filhos, e não sabe ler. “Estou esperando o que me garantiram. Se não vier, no ano que vem não vou mais guardar.” Não sem pesar: “Há 50 anos que estou querendo guardar essa praia.”

A noite cai, e em redor de Zé Lopes e do repórter do Estado se juntam, na escola de palha e madeira, as cerca de 40 pessoas que restam no Pirarucu (as 13 famílias de quatro anos atrás, quando se formou a RDS, reduziram-se a 7). “Quando vivíamos aqui por conta própria era melhor, porque pegávamos tracajá e madeira e trocávamos por mercadoria. Não nos faltava nada”, desabafa José Rodrigues da Silva, de 66 anos, com o consentimento de outros. “Depois que entrou esse negócio de reserva, o cabra aqui não tem para onde correr. O tracajá ia acabar nada, velho. Com 40 anos que eu vivo aqui, nunca se acabou”, testemunha Zé Rodrigues, nascido em Rio Branco (AC).

Zé Lopes rebate: “Não acabava, mas ficava pouco. Os comerciantes chegavam a Jutaí com 1.000, 1.200 tracajás”, recorda, referindo-se à sede do município, a dez dias de rabeta (canoa com motor de 5,5 cavalos) da comunidade. “Ainda estão fazendo isso lá embaixo”, acrescenta, sobre as praias sem vigilância ao longo do Rio Jutaí, um afluente do Solimões. “Quero ver se não tem lei nessa reserva. No Juruá tem, pô”, exemplifica Zé Lopes, citando uma reserva extrativista federal. “Tem lei, mas tem assistência”, retorque Zé Rodrigues. “Meu pai nunca faltou com a palavra”, encerra Zé Lopes. “Não sou eu, no fim da vida, que vou faltar.” O silêncio que se segue torna ainda mais densa a escuridão iluminada pelas poucas lamparinas com o diesel que restou.

A discussão entre os dois moradores mais velhos do Pirarucu sintetiza as incertezas e desilusões das 54 famílias que habitam a vasta RDS Cujubim, com 24 mil km², a maior do Brasil, e maior que o território de Israel. Criada há quatro anos, numa parceria da organização não-governamental Conservação Internacional (CI) com o governo amazonense, a reserva pôs fim, na prática, ao corte da madeira, que, como disse um ribeirinho, “não dá para pôr no bolso”. E, na teoria, à pesca do pirarucu (em extinção) e à venda de tartarugas, tracajás e seus ovos. Na calada da noite – e isso é literal –, muitos ribeirinhos continuam vendendo clandestinamente o grande peixe de escama e os “bichos de casco” e seus ovos para os comerciantes de Jutaí. No seu lugar, a alternativa de renda oferecida é a extração do látex da seringueira e do óleo de copaíba, um insumo farmacêutico e cosmético. Um barco da associação dos moradores, doado pela CI, passa pelas quatro comunidades recolhendo o látex e o óleo e deixando, em troca, mercadorias da cidade: arroz, sal, açúcar, café, leite em pó, sabão, gasolina, diesel.

Do ponto de vista comercial, a situação melhorou: no tempo dos “regatões”, os comerciantes compravam a madeira barata e vendiam os produtos da cidade pelo dobro ou triplo do preço, enquanto o barco da associação cobra um sobrepreço de 10%, a título de frete. Mesmo assim, muitos ribeirinhos sentem saudade da época em que podiam trocar livremente madeira, pirarucu e quelônios com os regatões, que, com a criação da reserva, pararam, em sua maioria, de ir ao Cujubim.

Os produtos legais que restaram não geram renda suficiente. Pelo quilo da borracha, são pagos R$ 2,70 (aí já incluídos R$ 0,70 do subsídio estadual e R$ 0,50 do municipal, que não veio no ano passado); pelo litro do óleo de copaíba, R$ 9. As situações variam em cada comunidade, mas os ribeirinhos não conseguem extrair mais do que algumas centenas de quilos de látex e alguns litros de óleo.

Na safra passada, cada produtor da comunidade São Raimundo conseguiu extrair entre 400 e 500 quilos de látex; já no Pirarucu, a produção foi de apenas 40 a 50 quilos por família. Há, também, o óleo da andiroba, mas a Beraca Sabará, a empresa que compra o óleo e ensinou alguns ribeirinhos a extraí-lo, não o quer na forma artesanal, e eles não têm as ferramentas para a extração mecanizada.

No ano passado, a CI cedeu R$ 10 mil à associação, para capital de giro. Os ribeirinhos estavam endividados. Com a produção e mais esse dinheiro, conseguiram pagar a dívida na época. Hoje, eles devem R$ 21 mil para a associação, em mercadorias que compraram a mais do que foi vendido em borracha e óleo. As dívidas individuais oscilam entre R$ 200 e R$ 1.150, segundo a contabilidade da associação.

Tradicionalmente, a seringa era o produto do verão, a estação seca que vai de junho a outubro. No inverno, a época chuvosa de novembro a maio, os ribeirinhos cortavam a madeira, que se tornara sua principal fonte de renda, desde que o preço da seringa despencou, a partir de 1982, substituída por resinas sintéticas. As toras, a maioria de cedro, eram vendidas para as serrarias clandestinamente. O ocaso da seringa afetou também o comércio do peixe. “No tempo da seringa, aqui era mais habitado, todo mundo comprava peixe e não precisava ir vender em Jutaí”, recorda o pescador Antonio Batista Vasconcelos, o Antonio Cigano, de 54 anos. “Agora, tem menos gente aqui.”

As agruras dos ribeirinhos parecem dar razão aos comerciantes de Jutaí, contrários à reserva. “Quando teve uma reunião aqui para criação da reserva, eles só colocaram as facilidades”, recorda Paulo Coelho da Fonseca, o maior deles. “Eu disse para um pessoal que veio de São Paulo (da CI): ‘É fácil para você, que trabalha num escritório com ar-condicionado, chegar aqui de avião e falar em preservar. Quero ver botar você lá seis meses sem poder tirar madeira, caçar, pescar e sem dinheiro. Quero ver se você não vai comer até os periquitos’.” Paulão, como é conhecido, continua: “Não mando mais barco, porque não vai trazer nada de lá. A lei só sabe proibir. Fecha todas as portas e não abre uma janela.”

“De fato, eles não têm outra fonte de sobrevivência que não seja a madeira, como produto de inverno”, reconhece Francisco de Assis Moreira, coordenador do escritório da associação do Cujubim em Jutaí. “E eles não pedem muito. Só querem madeira para sobreviver.” “Depois que isso aqui passou a reserva, piorou grande”, diz o acreano José Ribamar de Castro, o Zé Galego. “Na época da madeira, qualquer pessoa conseguia financiamento, coisa de R$ 20 mil. Tem gente que até hoje tem dívida com os madeireiros. Mas os caras são bacanas, não falam nada.” Zé Galego, de 48 anos, cujo pai veio do Ceará para o Acre, está começando um negócio de comércio, levando os produtos da floresta para a sede do município e trazendo mercadorias. Seu “patrão” (fornecedor e financiador) é Paulão.

Hábil com o cedro e a cerejeira, Zé Galego conta que queria cortar uma árvore para incrementar seu barco, mas a Conservação Internacional não deixou, porque não havia projeto de manejo. “A gente guarda o que é nosso e não pode usar”, conclui Galego, que vive na área há 38 anos. “Os grandes vêm aqui e acabam com tudo.” O biólogo José Maria Silva, vice-presidente da CI para Ciência, concorda que a extração da madeira “pode ser uma boa estratégia” para a “melhoria da qualidade de vida” dos moradores da reserva e até para a economia de Jutaí, onde hoje se comercializa madeira cortada ilegalmente. Mas salienta que são necessárias as seguintes condições, hoje inexistentes na região: “manejo seletivo, com bom apoio técnico e fiscalização de base comunitária”.

O Centro Estadual de Unidades de Conservação (Ceuc) tem um plano de manejo que confere a cada uma das quatro comunidades duas áreas de 500 hectares. A cada ano, 2 hectares de cada área seriam explorados, de maneira que à mesma área só se retornaria depois de 25 anos, quando as filhas das árvores cortadas estivessem adultas. Francisco Ademar Cruz, coordenador de Programas Sociais do Ceuc, tinha planos de mandar dois engenheiros florestais num barco para a reserva em outubro. Eles fariam inventário da flora nas áreas escolhidas para o manejo, e as comunidades poderiam começar a extrair a madeira em janeiro ou fevereiro. Mas o rio baixou depressa e o barco não foi.

É um sério golpe nas expectativas dos ribeirinhos. A falta de fontes de renda está desfazendo as comunidades – criadas pela reserva – e afrouxando o cumprimento das regras ambientais. “Para mim, ia ficar uma beleza essa reserva, porque a gente ia guardar umas coisas e ia ter depois”, disse Luís Teixeira de Oliveira, líder da comunidade São Francisco do Paraíso, a primeira da reserva, a três dias de rabeta da sede do município. “Mas não está adiantando nada. Aqui não é reserva. Está uma bagunça. Estou pelejando para ver se bota um domínio, porque a natureza não está dando conta, não. Se não puser alguém que cuida, vai-se acabar.”

Quando recebeu o Estado em sua cabana de madeira e palha, Teixeira só tinha farinha para comer, além de peixe e de um nambu (ave do tamanho de uma galinha) que caçou para o almoço. Aos 61 anos, ele diz que já “juntou os papéis” da aposentadoria, mas ficou sabendo que o funcionário do INSS só virá atendê-los “quando juntar 70 pessoas” – o que, pela demografia do lugar, pode não acontecer nunca.

Depois de 25 anos vivendo no lugar, ele está pensando em aceitar um convite de seu irmão e mudar-se, com os 4 filhos e 13 netos, para um sítio em Manacapuru, perto de Manaus. Como Zé Lopes, ele também foi incumbido de fiscalizar sua comunidade, mas, com isso, só ganhou inimigos. “Tem tanta gente passando de rabeta para cima e para baixo, levando tracajá, ovos, pirarucu”, denuncia Teixeira, que diz que não tem como impedir as invasões. Das cinco famílias que vieram morar no Paraíso, duas se retiraram.

O Estado encontrou os dois pais de família vivendo isoladamente. “O nosso presidente (Teixeira) não está muito bom, está criando problemas”, disse Wilson Tiago dos Santos, de 42 anos, que voltou para o seu sítio, a meia hora de rabeta do Paraíso, com a mulher e seis filhos. “Ele não quer que a gente pesque, só preserve, mas não temos outro ramo para sobreviver. A borracha está muito devagar. O recurso é pegar peixinho.”

“Falaram que ia trazer melhoria, não trouxe nada”, disse José Vasconcelos de Lima, o Zé Cigano. “Até comer está difícil no Paraíso. Não consentiam a gente pescar, pegar tracajá.”

Todos os ribeirinhos dizem que só pescam “peixe liso” (tucunaré, surubim, pintado, etc.), que é permitido, em vez de pirarucu e tambaqui, que têm escamas, e são muito cobiçados porque sua carne absorve mais os temperos: coentro, cebolinha, pimenta-de-cheiro, cebola e urucum, um corante natural. Mas muitos deles estão mentindo. Quando ouvem barulho de motor (que pode ser o Ibama), escondem os pirarucus, quelônios e ovos na beira do rio, e depois os recuperam.

O governo do Amazonas lançou, em setembro, o Bolsa-Floresta, programa de complementação de renda e de financiamento de pequenos projetos para melhorar as condições de vida e de produção dos ribeirinhos. Cada família receberá R$ 50 por mês. O Cujubim deve ser visitado pela equipe de cadastramento – acompanhada de um juiz para tirar certidões de nascimento dos beneficiados –até o fim deste ano.

Ao lado da renda, o outro pilar para a reserva funcionar é a fiscalização. O Ceuc planeja construir um posto de fiscalização no Paraíso, que fica na entrada da reserva. Um técnico do Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas (Ipaam) irá ao local, escoltado por policiais militares, quando a comunidade pedir ajuda na fiscalização.

Em Manaus, Ademar explicou ao Estado que o “rancho” de Zé Lopes e Luís Teixeira não fora pago porque o barco da associação não viajara em julho para a reserva, como previsto. O Paraíso e o Pirarucu foram providos de rádio, para falar com o escritório da associação em Jutaí, mas ele funciona precariamente. O isolamento, a falta de comunicação e de logística amplificam a angústia dos moradores da vasta reserva – e, com ela, o incentivo aos crimes ambientais. Para que ambos arrefeam, muitas promessas precisam virar logo realidade.

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