Pedro Mulato

JUTAÍ (AM) – O Pirarucu é a última comunidade da reserva Cujubim. Mas não é o último lugar habitado. Mais duas horas rio acima (numa voadeira de 15 cavalos), ali onde o Rio Jutaí se estreita e se aproxima de sua nascente, um pequeno ancoradouro de madeira na praia de areia branca indica a “colocação” mais distante da reserva.

A casa de Pedro Ferreira dos Santos, o Pedro Mulato, fica onde a reserva já encosta na Terra Indígena Vale do Javari, à qual se chega pelo outro lado, pelos municípios de Eirunepé ou Tabatinga, e onde o fuso horário já seria o do Acre (2 horas mais cedo que Brasília), se alguém ali usasse relógio.

São 11h30 da manhã. Maria do Carmo Balduíno Bezerra, a Dona Mariquita, já almoçou, e está lavando roupa com a neta, Adriana, no “porto” de sua casa. Apesar do inusitado da visita – até onde se sabe, é a primeira vez que jornalistas e mesmo alguém que não é da região passam por aqui –, Mariquita reconhece o guia do Estado e age com naturalidade, explicando que o marido está “brocando estrada” (abrindo trilhas na floresta para extrair látex das seringueiras).

A voadeira sobe mais um pouco o rio, até encontrar a canoa encostada no barranco de cerca de 6 metros que Pedro Mulato, de 60 anos, escalou com a ajuda de um tronco caído. Com os gritos característicos que se usam na floresta para se comunicar, o guia vai-se orientando entre as árvores pelas respostas de Pedro Mulato, que vem caminhando na direção dos visitantes: espingarda no ombro esquerdo, terçado na mão direita, uma bolsa a tiracolo – na qual traz o fumo e os cartuchos -, camisa de abotoar e bermuda, os pés descalços, a barba branca espessa.

A espingarda no ombro faz a conversa enveredar pelo tema “onça”. Pedro Mulato – que também se apresenta como Bicho Doido ou Satanás – conta como já botou duas para correr com terçado. “Eu ia brocando também assim”, conta ele. “Quando dei fé, esbarrei em riba dela. Ela tava no ponto de pular em cima de mim. Pulei de pisão em riba dela, e a bicha pulou pra trás. Aí não dei chance mais não. Corri mesmo doido, que nem um Satanás mesmo. Ela abriu (fugiu).”

Na segunda vez, Pedro Mulato vinha com a filha Maria José, de 20 anos, e a neta Adriana, de 16. Desceram da canoa e iam subindo o barranco, quando viram as pegadas da onça. Sua cadela começou a latir “que nem uma doida”. “Não demorou, ela correu atrás da cachorra.” A cadela também a fustigou, e a onça foi parar “em cima de um pau” pouco mais alto que Pedro Mulato. “Quando olhei, eu estava embaixo da onça, e ela ainda tava animadinha para pular em riba de mim. E o terçado velho que eu andava nem ponta tinha, colega. Era bem rombudão, cego.” Ele o apontou para a barriga da onça: “Eu digo, se ela pular, não é possível que ele não arrombe. Fiquei lá, e a bicha olhando para mim.”

Havia um cipoal entre ele e a onça. Pedro Mulato cortou dois pedaços de pau com o facão e deu a volta para um lado da árvore que estava limpo. Com toda a sua força, bateu no antebraço direito da onça. “Ela correu para longe de mim, atravessou o igarapé. Eu dei graças a Deus.”

Pedro Mulato foi voltando com a cadela. Mas a história não tinha acabado: “Parece que a miserável foi atrás de mim, me espiando todo o tempo. Fui embora. No outro dia, em vez de eu ter vindo matar a onça, fui foi trabalhar.” A filha e a neta foram pescar no lago, e “deram notícia de uns urubus”. Pedro Mulato pensou logo na porca que criava perto de onde viram a onça. “Quando cheguei lá, o que encontrei foi um pedacinho de osso do pescoço assim (mostra uns 20 cm com os indicadores), limpinho. Nem cabelo ficou.”

Em sua canoa a remo, Pedro Mulato acompanha os três visitantes até o seu porto e, de lá, caminhando por uma trilha, até a sua choupana. Há dois anos, ele mora aqui com Mariquita, a filha e a neta, sob um teto de palha de jaci, de 7 metros por 6, sustentado por cavacos (caibros), sem paredes. Como todo mundo na região, eles dormem em redes. Por ali circulam livremente os bichos de estimação: um mutum (ave preta grande, com uma crista vermelha), um pierre (pássaro preto e azul claro) e uma fêmea de mico bigodeiro chamada Pipita.

Na verdade, essa é a sua “casa de farinha” – destinada a moer, assar e armazenar o produto da mandioca. Ao lado, Pedro Mulato está construindo sua casa nova, de 8,40 metros por 6, com teto de palha de caranã. Antes, eles moravam 2h30 de rabeta rio acima, ou seja, mais longe ainda do Pirarucu. Plantou sua roça nessa colocação, chamada de Igarapé Vera Cruz, porque lhe disseram que a comunidade seria ali. A comunidade foi erguida mais abaixo, mas Pedro Mulato ficou: “Tô me engraçando mais aqui. A terra é boa. Acho que vou morrer aqui.”

Ele conta que nunca teve maiores problemas com os índios, seus vizinhos. “O que eles fazem comigo, perco, deixo para lá”, explica, referindo-se às mandiocas que arrancam de sua roça de vez em quando.

Diferentemente de muitos ribeirinhos, que praticamente se limitam ao extrativismo, Pedro Mulato, nascido na localidade de Cabo Verde, três dias abaixo de Cruzeiro do Sul (AC), filho de pai cearense e de mãe acreana, é um agricultor de mão cheia. Planta cana, mandioca, melancia, banana, mamão, caju, goiaba, limão, cupuaçu (que chama de pupuaçu), graviola, araticum, açaí, bafu (coco com semente grande e polpa carnuda, que dá até 3 litros de um suco amarelo). Tem uma engenhoca para moer a cana, um motor de rabeta adaptado para triturar a mandioca e o forno para assar a farinha.

Em agosto, Pedro Mulato estava com uma encomenda de 10 litros de “mel” (melado), e diz que poderia produzir também açúcar, rapadura, alfininho (puxa) e batida (alfininho sólido). “Tenho vontade de eu levar (para Jutaí), mas não tenho condições, tenho que esperar alguém vir”, lamenta. “Se eu pudesse ir vender lá, apurava mais um dinheiro.” Para isso, precisaria de um motor de 9 cavalos, numa “canoa maior”, que levaria uns dez dias de viagem, rio abaixo.

De outras estradas que já tinha abertas, Pedro Mulato vendeu 15 quilos de látex para dois comerciantes que passaram por lá (a R$ 1,50 o quilo) e 23 litros de óleo de copaíba (a R$ 10 o litro), e com o dinheiro comprou seu “rancho”: açúcar, café, sabão, 2 litros de óleo diesel para a lamparina. Gasolina para a rabeta, que é vendida aqui por R$ 4,50 o litro, estava em falta.

Ele acaba de produzir também 500 quilos de farinha, dos quais emprestou 200 para o vizinho Chico Barroso, para ajudá-lo a comprar um motor de polpa, e vendeu 50 ao comerciante Zé Galego, a R$ 1 o quilo. “Não gosto de sobreviver à custa de farinha porque é um dinheiro que não dá para viver bem”, diz ele. “Tô com vontade de ver se me aposento no ano que vem, que é da política, para ver se tenho uma ajuda melhor.”

Ele conta que nunca votou, “graças a Deus”. “O presidente, eu vejo dizer que é o presidente Lula”, diz Pedro Mulato, que tinha um rádio, mas pifou. “Nós não sabe (sic) que jeito ele faz lá. A história dele é bonita. O que ele falou nunca vi chegar aqui. Mas, pelo que a gente ouve, não sei se é verdade, está fazendo um bom governo.”

Analfabeto, Pedro Mulato quer que a filha e a neta aprendam a escrever. “Levei as meninas (à escola no Pirarucu), mandei ele (o professor) passar tarefa para elas ir pelejando, riscando papel para amolecer os dedos”, conta ele, enquanto as moças mostram seus cadernos, em que copiaram as letras, sílabas e os seus nomes dezenas de vezes. “Aí, todo mês, eu ia buscar mais tarefa.” Maria José e Adriana estavam gostando, mas o professor voltou para Jutaí, primeiro com malária, depois nas férias de julho. “Quando pintar o professor, a gente vai lá, trabalhar a respeito desse negócio”, prometeu Pedro Mulato. “O que eu posso fazer, eu me esforço.”

A família já tinha almoçado quando os visitantes chegaram. Mariquita cozinhou no forno a lenha um mamuri, um dos peixes que costumam pescar no rio, assim como lado do surubim, pacu, mocinha, jondiá e caparari. Pedro Mulato também caça queixada, macaco, paca, jacu, mutum e anta, que, extinta noutros lugares, aqui é “mais fácil de matar que porco”.

Num dos caibros do telhado está pendurado o couro de um jacaré açu, que em abril andava roubando os pacus que Pedro Mulato e as mulheres pescavam. Numa tarde, ele colocou um pacu num anzol e esperou até a manhã seguinte. Durante a noite, o jacaré mordeu a isca e ficou preso. Pedro Mulato o matou com a golpe de machado.

Todos os dias, a família acorda por volta das 5 h. Quando tem café, bebem um gole, e depois “vão para o pirãozão”: peixe ou carne com farinha. Pedro Mulato vai pescar, caçar, brocar estrada ou trabalhar na roça, enquanto as mulheres arrumam a casa e lavam roupa. Depois, também vão pescar ou ajudar na roça.

“Até agora, não tive ajuda de ninguém, a não ser das mulheres que mora mais eu (sic)”, diz Pedro Mulato, que tem sete filhos morando fora (3 em Jutaí, 2 no Pirarucu, 1 em Manaus e um 1 em Eirunepé). “Eu broco e derrubo. Da coivara (derrubada da mata para queimada) para a frente, elas me ajudam.”

No fim da manhã, voltam para almoçar pirãozão de novo. Durante a tarde, quando dá vontade, comem frutas e o que chamam de “pé de moleque” (um bolo de goma de tapioca). Se o sol está muito forte, ficam descansando na sombra das 15h às 17h30, quando vão tomar banho de cuia no rio, e depois jantar (a mesma comida do almoço). Ficam conversando, ao som das gargalhadas contagiantes de Adriana, vem o sono e dormem.

Quando ficam doentes, usam os remédios da floresta. Além dos tradicionais (ver box), Mariquita tem duas plantas para fazer chá, chamadas de cibalene e anador, por analogia aos remédios da cidade. “Aqui não anda uma pílula, não anda um magnésio, não anda nada”, diz ela. “Aqui não aparece visita de ninguém. Adoeceu, morreu, enterrou.”

Quando o marido se afasta um pouco, Mariquita, de 58 anos, nascida no sertão pernambucano, conta que por ela não viveria isolada. “Gosto não, de morar aqui. Preferia um canto que morasse gente.” Só não sabe onde: “Já fui na Foz (Jutaí) e no Eirunepé, só gosto para passeio, mesmo. Comunidade também não. Preferia uma cidade, não sei qual.”

Pedro Mulato pensa diferente. Ele entretém os visitantes tocando ao violão uma música de sua autoria, que começa assim: “Eu moro afastado da cidade, bem perto da felicidade.”

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