GAZA – A Faixa de Gaza sempre foi conhecida como “formigueiro humano”: os hoje quase 2 milhões de habitantes se acotovelam nos seus 41 km de comprimento por 6 a 12 de largura (365 km²). Ultimamente, ela tem sido chamada de “prisão a céu aberto”, por causa do bloqueio imposto por Israel desde 2007, quando o Hamas assumiu o controle; pelo Egito desde 2013, quando os militares apearam a Irmandade Muçulmana do poder; e pelo próprio Hamas, cujo controle sobre o território é cada dia mais exaustivo.
Os problemas vão se acumulando: em maio a Autoridade Palestina (AP), dominada pelo Fatah, facção moderada rival do Hamas instalada na Cisjordânia, cortou 30% do orçamento da Faixa de Gaza, para pressionar por um governo de coalizão. Antes mesmo dessa medida, o desemprego já era 65% e 70% da população vivia abaixo da linha de pobreza. Nesse cenário, existem inovação e empreendedorismo? A resposta é contra-intuitiva: muito, pela combinação da elevada importância que os palestinos dão à educação, por sua resiliência e pelo simples instinto de sobrevivência.
Se o bloqueio é físico, a melhor resposta para ele é a tecnologia da informação. Foi isso o que entenderam os criadores da Gaza Sky Geeks, incubadora e aceleradora de startups, fundada em 2011 com patrocínio da Mercy Corps, entidade americana de ajuda humanitária. Seu nome já é inspirador: quando se está em Gaza, instintivamente se olha para o céu e para o mar, em busca de alívio da angústia do confinamento.
A Geeks começou em um apartamento, oferecendo cursos de informática e empreendedorismo nos fins de semana, ou simplesmente acesso à internet, em um território onde havia eletricidade apenas 6 horas por dia. Agora, são 4, graças ao “contingenciamento” da AP.
No ano passado, eles se mudaram para um vasto andar de 600 m², cujas paredes divisórias foram derrubadas, e o espaço, decorado com grafites de artistas locais, que lhe dão um ar de Silicon Valley. Esse oásis de contemporaneidade contrasta violentamente com o cenário da Faixa de Gaza, que parece ter parado no século 7.º ou 20, dependendo do aspecto que se observa.
Em 2013, com patrocínio de 900 mil dólares da Google, passou a incubar e acelerar startups. No primeiro ano, 4 delas conseguiram investimentos para tocar seus projetos. Em 2015, das 18 que se incubaram, outras 4 atraíram capital. No ano passado, 11 entraram e 5 delas estão conversando com potenciais investidores. Nesse período, os aportes variaram entre 20 mil e 100 mil dólares. As 5 deste ano estão postulando 80 mil dólares. Entre os investidores estão o fundo palestino de inovação Ibtikar e o Emirates Business Information Center (Ebic), de Dubai, entre outros do Oriente Médio e Norte da África.
Um crowdfunding lançado no ano passado, que ainda está aberto, já levantou 359.862 dólares. Seu propósito foi comprar e manter geradores de eletricidade e ampliar os programas de empreendedorismo para as mulheres, que vão do treinamento técnico e cursos de gestão até oficinas para desenvolver sua auto-estima. Isso, em uma sociedade em que os homens ainda se casam até quatro vezes e proíbem as mulheres — todas com a cabeça coberta, quando não o rosto também — de trabalhar.
“Só posso conversar dez minutos com você, porque tenho uma reunião pelo Skype com um potencial investidor”, desculpou-se Nour el-Khoudary, de 30 anos, criadora do Mommy Helper, um aplicativo que reúne mães e especialistas para trocar informações sobre como cuidar dos filhos.
Nour se formou em 2007 em comunicação na Universidade Islâmica de Gaza. Em 2014, ano da última guerra entre o Hamas e Israel, mudou-se para Chicago com o marido, o arquiteto Fedi Zaher, que ganhou uma bolsa da Fulbright para fazer lá uma pós-graduação em animação. O filho do casal nasceu lá, e Nour viveu a experiência de aprender sozinha, longe da mãe, a cuidar de um bebê.
“Comecei a publicar vídeos e a trocar experiências no Facebook com outras mães, e vi que elas passaram a me seguir.” O casal voltou para Gaza e encontrou a Sky Geeks. Zaher se tornou co-fundador do Baskelet, um estúdio de criação e plataforma de publicação de games para o mundo árabe. E Nour desenvolveu o Mommy Helper, que está saindo agora da fase de incubação.
De janeiro para cá, quando entrou no ar, o aplicativo já teve 2 mil downloads e realizou 45 sessões com especialistas em cuidados com crianças, nutrição, educação, psicologia, assistência social, etc., para mães árabes na Palestina, Jordânia, Egito e até na Austrália. Cada sessão custa 15 dólares, e o aplicativo deu 30% de desconto nessa fase inicial. “Existem 8 milhões de mães árabes vivendo fora de seu país, entre elas emigrantes da Síria e do Iraque, que se sentem sós numa nova cultura e não conseguem ajuda porque sequer falam a língua”, descreve Nour. “Imagine uma síria indo a um assistente social alemão.”
Se a pauta do aplicativo de Nour ainda lhe parece muito associada à tradicional divisão de tarefas no lar, dê uma olhada no projeto de Nuwar Abu Awwad, de 21 anos, que vai se formar em inglês e em administração dentro de três meses. Com o sócio Mohamed Nijim, de 27 anos, formado em administração, ela está criando o portal Tashbeak (“Conectar”, em árabe), que coloca desenvolvedores de startups em contato com consultores.
Os clientes analisam os perfis dos consultores, escolhem e pagam online pelas sessões, que duram 15, 30 ou 60 minutos. “A de 15 é para o cliente que tem uma dúvida específica. Por exemplo, quanto custa para registrar uma empresa de alimentos e bebidas em Dubai”, explica Nuwar. “Meia hora é para informações gerais e uma hora, para resolver um problema sério.”
Cinco minutos antes de o tempo acabar, o sistema avisa o cliente, que, se quiser, pode realizar novo pagamento para estender a consulta. Se ele não fizer isso, a ligação se encerra automaticamente no tempo previsto. A plataforma vídeo-conferência usada no Tashbeak foi criada especialmente para ele, por Ahmed Diab, que tem sua própria empresa em Gaza e trabalha meio período com desenvolvimento de programas. Desde o lançamento, dia 2 de fevereiro, 156 clientes se registraram no site. Desses, 14 fizeram 19 consultorias (um fez três e outro, duas). Entre os consultores, 183 se inscreveram, mas os administradores só aprovaram 50 até agora: “Nosso processo de aprovação é muito rigoroso. Passa por três estágios”, orgulha-se Nuwar.
Ela e Mohamed também estão procurando investidores. Nuwar trabalhou três anos e ele, seis, com organizações não-governamentais. Eles já haviam desenvolvido outro projeto na Sky Geeks, mas não conseguiram investimento. Começaram então a pesquisar sobre fracassos de startups e suas razões. Descobriram que mais de 90% dos projetos no mundo todo não decolam. No Oriente Médio e Norte da África, o índice é de 85%. “É um desastre”, constata Nuwar. Por outro lado, eles viram que as startups que ouvem uma consultoria têm faturamento seis vezes maior. Daí surgiu a ideia de facilitar o acesso a esse serviço.
Muitos palestinos gostariam de deixar Gaza, mas são impedidos por Israel. Os profissionais que estão por trás da Sky Geeks fizeram o caminho inverso.
Moamin Abu Ewalda, de 34 anos, saiu de Gaza em 2001, aos 18, depois de concluir o ensino médio. Estudou engenharia das telecomunicações na Universidade de Ciência e Tecnologia Miser, no Cairo. De lá foi trabalhar em Dubai com infraestrutura de telecomunicações.
Em 2014, depois da guerra que semi-destruiu a Faixa de Gaza, ele decidiu voltar: “Eu queria fazer algo pelo lugar onde nasci, compartilhar minha experiência, não só como engenheiro. Esse povo precisa também de autoconfiança para lutar na sua vida diária”.
Hoje, ele é um dos 11 empregados em tempo integral. A organização continua contando com muitos voluntários, incluindo alguns que atuam remotamente, da Europa, Oriente Médio e Norte da África. Profissionais de tecnologia da Google, Microsoft e Uber, entre outras, têm vindo a Gaza dar palestras e treinamentos.
A Faixa de Gaza tem empreendedores mais convencionais, embora não menos ambiciosos. Estamos no mês sagrado do Ramadã, que obriga os muçulmanos a passar uma noite entrecortada de sono, quebrando o jejum às 20h e levantando à meia-noite e às 3h para comer, e depois passar 16 horas e meia sem ingerir nada. Mesmo assim, Hammam Yazegi estava hiperativo na manhã de terça-feira, quando recebeu Exame Hoje em seu escritório.
Herdeiro do Grupo Yazegi, fundado em 1954 pelo seu avô, e que hoje engarrafa a Pepsi, 7-Up e Mirinda e distribui salgadinhos Lais, Doritos, Cheetos e Chips para a Faixa de Gaza, Hammam interrompia a entrevista a cada instante para atender seu advogado. Ele estava consultando a disponibilidade de nomes na Associação Comercial para a terceira empresa de Yazegi: uma agência de marketing.
Aos 35 anos, ele toca uma distribuidora exclusiva do leite longa vida Mari e o Café Gahwetna, primeiro empreendimento de sua empresa de turismo Hampstead (em homenagem ao bairro de Londres onde morou). Além de ser o diretor de marketing do grupo de sua família.
Depois de estudar administração na Universidade do Cairo, Yazegi trabalhou como auditor noturno em hotéis da rede Hilton em Londres e como relações públicas em Dubai. Em 2010, depois de 11 anos fora de Gaza, seu pai lhe pediu que voltasse para tomar pé da empresa da família, já que ele estava “ficando velho”.
Yazegi é o tipo de empresário que acredita no capitalismo de escala: margens pequenas e grandes volumes de venda. Graças a essa mentalidade, em meio às adversidades que se acumulam na Faixa de Gaza, e ainda por cima com o Ramadã, ele está aumentando seu faturamento.
Depois que a Autoridade Palestina cortou em maio 30% dos salários dos funcionários públicos, Yazegi baixou na mesma proporção o preço da Pepsi. A garrafa de um litro, por exemplo, passou de 3 shekels (3 reais) para 2 shekels. As vendas aumentaram. Como o refrigerante é vendido em pacote com 7-Up, Mirinda e os salgadinhos, que mantiveram os preços, o faturamento também aumentou.
“Em toda situação há uma oportunidade”, sentencia Yazegi, que na Faixa de Gaza está elevando essa visão um degrau acima. A coisa aqui é bem complicada. Ele está abrindo a consultoria de marketing porque acha que, para sobreviver, com a deterioração da situação, as empresas vão precisar de novas estratégias.
No seu café também ele combina preços baixos com boa qualidade. E copiou uma ideia muito simples que viu na sede do Facebook na Baía de São Francisco: um quadro na parede em que as pessoas podem escrever mensagens. Resultado: todas as noites, em média 700 pessoas vão quebrar o jejum, jogar cartas e fumar narguilé no Gahwetna.
Ter muitas bocas para alimentar pode ser considerado uma desvantagem, mas não é assim para o pequeno agricultor Akram Abu Khusa, de 43 anos. Ele, os quatro irmãos e os netos somam 25 homens — ou 50 braços. Todos trabalham no cultivo de morango, vendido para a Europa — via Israel — e para o mercado local.
Akram conta que, há 15 anos, havia 2.500 pequenas propriedades como a dele na Faixa de Gaza. Restaram só 300. Em parte as terras foram cedidas à construção de casas, em parte sucumbiram às guerras e bloqueios. “Conseguimos sobreviver porque não precisamos pagar salários”, diz sorrindo o agricultor. “A maioria dos produtores parou porque custava muito caro contratar empregados.”
Na região de Abu Salem, no sul da Faixa de Gaza, onde Akram tem sua terra, tradicionalmente se cultivavam laranjas e toranjas. Com o início da segunda intifada (levante palestino), em dezembro de 2000, Israel exigiu que os agricultores cortassem as árvores, alegando que eram usadas como esconderijo pelos militantes que atacavam os colonos judeus. Foi aí que Akram descobriu o morango, uma planta rasteira, que se dá muito bem com o clima e o terreno da Faixa de Gaza. Israel e os colonos se retiraram em 2005, mas o morango ficou.
A entidade alemã Global Gap, que ajuda agricultores no mundo em desenvolvimento, tem prestado assistência técnica à família, e construiu uma estufa para o cultivo de morangos orgânicos certificados. A propriedade de 15.000 m² ainda mantém uma área de plantação de morango convencional, além de uma outra, reservada à lavoura de milho. Por ano, produz 5o toneladas de morango.
“O mercado europeu é muito exigente”, relata Akram. “Todos os morangos têm de ter o mesmo peso e tamanho.” Para o mercado europeu, o quilo do morango sai por 25 shekels (25 reais) no começo da colheita, no início de novembro; cai para 20 no meio do mês e chega a 10 no fim. “Esse é o preço que Israel paga. Não sei por quanto eles vendem para os europeus”, ressalva Akram. No mercado de Gaza, o quilo sai por 1,80. Isso porque aumentou. No ano passado, era 1 shekel.
Gaza não é para amadores. Mas quem disse que os palestinos são?
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