Chanceler alemão ignora queixas de candidatos que boicotaram eleição e dá apoio ostensivo ao presidente afegão
CABUL – Os votos nem começaram a ser contados, mas ninguém parece ter dúvidas de que o presidente interino Hamid Karzai – apoiado pelos Estados Unidos – ganhou com ampla margem de votos a eleição presidencial de sábado. A começar pelo chanceler alemão, Gerhard Schröder, que ontem fez uma visita de seis horas a Cabul, para se reunir com Karzai e com as tropas alemãs que fazem parte da força multinacional no país.
“Sou da opinião de que ele vai ganhar, e no primeiro turno”, disse o chanceler aos jornalistas, ignorando as queixas de candidatos da oposição, segundo os quais a visita de Schröder é uma demonstração de que a Alemanha, assim como os Estados Unidos, apóia a eleição de Karzai.
Schröder, que encerrou sua visita uma hora antes do previsto, teve ontem uma demonstração do monumental aparato de segurança – do qual os alemães participam com 2 mil soldados – que permitiu a realização das eleições em relativa ordem, apesar das ameaças da Al-Qaeda e dos taleban.
O Mercedes-Benz preto do chanceler alemão se movimentou por Cabul num comboio composto por quatro vans da polícia de trânsito, dois jipes e seis veículos blindados de combate da Força Internacional de Assistência à Segurança (Isaf), uma picape da Polícia Nacional e um veículo 4×4 com agentes à paisana falando nervosamente em walkie-talkies. Dois helicópteros deram cobertura durante os trajetos e o trânsito foi interrompido por caminhões do Exército afegão.
A contagem dos votos da eleição presidencial, a primeira da história do Afeganistão, só começará dentro de dois dias, depois que o Comitê Conjunto de Gestão Eleitoral (JEMB, na sigla em inglês), que reúne representantes da ONU e do governo afegão, receberem por escrito as queixas dos candidatos de oposição, que denunciaram irregularidades no pleito. Enquanto isso, os funcionários vão conferir se o número de cédulas em cada uma das 22 mil urnas bate com o das respectivas listas de votantes.
Pelo menos dois dos 15 candidatos de oposição que boicotaram a eleição alegando fraudes anunciaram que acatarão a decisão da equipe de três especialistas formada pelo JEMB para apurar as denúncias: Massuda Jalal, a única candidata mulher, e Mohammed Mohaqeq, da etnia hazara (descendente dos mongóis). Há informações de que o ex-ministro da Educação Yunas Qanuni, líder tajique da Aliança do Norte, que se aliou aos EUA para derrubar o regime taleban em 2001, e considerado o principal rival do presidente Hamid Karzai nessa eleição, também deve adotar essa posição.
O embaixador dos EUA em Cabul, Zalmay Khalilzad, um afegão naturalizado americano, tem atuado intensamente nos bastidores para convencer os principais candidatos a voltar atrás na decisão do boicote. O enviado da União Européia ao Afeganistão, o espanhol Francesc Vendrell, também se reuniu com alguns candidatos. Os oposicionistas que se mantêm firmes no boicote acusam o presidente de estar oferecendo cargos no novo governo em troca de apoio. “Se o povo afegão tiver votado em mim, não haverá negociação de cavalos”, desmentiu Karzai, usando uma expressão que equivale a balcão de negócios. “O tempo da negociação de cavalos acabou no Afeganistão.”
A principal controvérsia foi causada por uma aparente confusão num número indeterminado de seções eleitorais, cujos funcionários trocaram a tinta indelével destinada a marcar o polegar esquerdo dos eleitores pela tinta que deveria ser usada para marcar as cédulas. O erro permitiu que alguns eleitores lavassem o dedo e votassem mais de uma vez.
“Pelas evidências que temos até agora, as irregularidades não foram suficientes para impactar o resultado da votação”, disse ontem Vendrell. “Até em países desenvolvidos, há deslizes técnicos em eleições. Perguntem à Flórida.”
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