Segundo estudo obtido com exclusividade pelo Estado, os planos terão 100% de crescimento nos próximos cinco anos e não haverá infra-estrutura suficiente para o atendimento
A regulamentação do setor de saúde privada no Brasil, tal como está tramitando no Senado, tem tudo para levar o sistema ao colapso em poucos anos. Essa é a conclusão do estudo realizado pela empresa de consultoria Symnetics, obtido com exclusividade pelo Estado. Especialistas em saúde pública e privada concordaram, em parte ou integralmente, com o diagnóstico.
Amanhã, o ministro da Saúde, José Serra, deve comparecer à comissão de Assuntos Sociais do Senado para pedir pressa na aprovação do projeto de regulamentação. Pelo regimento, o projeto só pode sofrer supressões, e não modificações, sob pena de voltar para a Câmara. O governo tem argumentado que essa regulamentação é melhor do que nada.
Os dois principais pontos do projeto são a legalização de contratos mínimos, que excluem a cobertura de tratamentos mais complexos, e a abertura para a entrada de seguradoras estrangeiras. Os contratos mínimos e a concorrência dos gigantes estrangeiros resultarão em planos de saúde muito mais baratos, que atrairão dezenas de milhões de brasileiros.
Atualmente, 41 milhões de pessoas estão cobertas por uma das quatro modalidades da “medicina supletiva”: seguros, convênios, cooperativas médicas e autogestão de empresas estatais ou privadas.
Com base na evolução dos últimos anos, o Ministério da Saúde prevê, para os próximos três anos, um crescimento vegetativo – ou seja, se nada acontecesse – de 40%, ou mais de 16 milhões de novos usuários.
Com o barateamento dos planos e a agressividade empresarial que se prenuncia, e com base na evolução de outros setores a partir do Plano Real, os consultores da Symnetics prevêem a incorporação de 40 milhões de pessoas — 100% de crescimento — nos próximos cinco anos. Segundo o IBGE, essa é a população das classes C e D. Os atuais usuários são das classes A e B.
Na avaliação dos pesquisadores, a rede hospitalar privada não tem infra-estrutura nem capacidade de gestão para assimilar esse novo contingente. Enquanto isso, a rede pública estará sendo desmontada, num processo que os consultores chamam de “desestatização” da saúde – movimento desordenado, em contraste com a privatização, que é um processo planejado. O governo já começou a transferir os hospitais públicos para mãos privadas, por intermédio da lei das organizações sociais.
De acordo com Aerton Paiva, sócio da Symnetics, os hospitais brasileiros, tanto públicos quanto privados, não conseguem padronizar os seus custos. Não há uma idéia de quanto custará ao hospital o atendimento a determinado paciente com determinada doença.
Os softwares específicos de serviço hospitalar, disseminados no Hemisfério Norte, ainda não são usados no Brasil. Os médicos não seguem padrões de conduta estabelecidos por consenso nos hospitais, como ocorre nos países desenvolvidos. E o empresariado do setor não dispõe das informações essenciais sobre infra-estrutura de atendimento, para julgar que tipo de investimento deve fazer, em que se deve especializar e como pode otimizar os seus recursos, segundo o jargão gerencial. “É tudo no escuro”, diz Paiva.
“Eles estão cobertos de razão”, reagiu o economista André César Médici, quando confrontado com o quadro desenhado pelos pesquisadores. Falando de Washington, Médici, que trabalha há 20 anos nessa área, e lançou, no final do ano passado, o livro A Economia Política das Reformas de Saúde, afirmou que essa desorientação deriva não só das dificuldades específicas do setor, mas também da “cultura inflacionária”, que “não mede custos”.
Os donos de hospitais passarão a ser bombardeados, a partir da sanção da lei que regulamenta o setor, por ofertas de contratos de empresas de medicina de grupo e de seguradoras, que correrão para abocanhar novas fatias desse mercado bilionário. “Elas (as americanas) virão com toda a voracidade, diante do fracasso do modelo nos EUA e da falta de restrições no Brasil”, teme Mário Scheffer, membro do Conselho Nacional de Saúde.
Segundo Henri Wierzbicky, gerente de pesquisas da Symnetics, os donos de hospitais não terão os instrumentos para medir as relações entre infra-estrutura, demanda, custo e benefício. Noutras palavras, mesmo que queiram, esses empresários não poderão evitar assumir contratos acima de sua capacidade.
O grande drama do setor de saúde é o fato de sua receita – as mensalidades – ser fixa e seus custos – o pagamento dos atendimentos – serem variáveis. O esforço é para reduzir e fixar os custos. No Brasil, a cobertura é feita de acordo com a despesa: o hospital apresenta a conta – imprevisível — e o provedor, seja o Estado ou uma empresa, paga.
Pagamento fixo – Nos Estados Unidos, já houve uma evolução para o pagamento por procedimento com um custo fixo: para tal doença, tantos dólares. A meta, lá, é chegar ao pagamento fixo pelo número de pessoas cobertas. Não importa o que acontecer no mês, quantos ficarem doentes, e com que grau de complexidade: o provedor pagará a mesma quantia para o hospital conveniado. Esse sistema chama-se “captation”.
O governo brasileiro implantou, em janeiro deste ano, um sistema de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) com base nesse princípio. O Plano de Assistência Básica (PAB) paga R$ 10 por cidadão a cada ano, para atendimento ambulatorial. Os procedimentos de maior complexidade, como exames, internações e cirurgias, continuam pagos na apresentação da conta.
Em São Paulo, o PAS segue linha semelhante.
“O SUS, com seus princípios de eqüidade, descentralização e controle social, não teve sequer a chance de ser totalmente implantado, e já se procura desestruturá-lo”, lamenta Scheffer, referindo-se à política do governo, que, segundo ele, transforma a saúde “num produto na prateleira: cada um tem aquilo que pode pagar e, para quem não pode, oferece-se uma cesta básica de sobrevivência”.
Seja como for, o caminho rumo à padronização dos custos é longo e acidentado. Um dos grandes obstáculos é a chamada “medicina defensiva”: no percurso do diagnóstico, o médico pede um número excessivo de exames, para ter respaldo contra eventuais processos por erro médico.
Esse curso levou os Estados Unidos a ter o maior gasto com saúde, em termos absolutos e relativos, e um dos sistemas mais insatisfatórios, como observa Haino Burmester, diretor do Programa de Estudos Avançados em Administração Hospitalar e de Sistemas de Saúde (Proahsa), do Hospital das Clínicas de São Paulo. Daí que o esforço de padronização tenha partido dos Estados Unidos, dentro do conceito de “managed care”, ou atendimento gerenciado.
Os hospitais americanos criaram os chamados prontuários eletrônicos, versão computadorizada do velho registro da evolução dos pacientes. Com base nesses dados, são montados protocolos que determinam a conduta a ser seguida pelos médicos diante de cada caso. A padronização passou do nível hospitalar para o nacional, por meio de legislação específica e da supervisão da Agency for Health Care Policy and Research (AHCPR), criada em 1989.
Os protocolos e a legislação respaldam o profissional de saúde, em caso de acusações de erro médico. A responsabilidade é compartilhada com o hospital.
Entretanto, nos Estados Unidos, a relação médico-hospital é bem diferente da do Brasil. Aqui, o hospital é apenas mais um dos empregos do médico. “É um espaço que ele aluga”, resume o gerente de pesquisas .
Os grandes hospitais brasileiros têm centenas de médicos confinados, que entram e saem, com maior ou menor freqüência, de acordo com as demandas de atendimento e o interesse deles.
Os médicos americanos têm vínculo muito mais forte com o hospital, mantendo contratos de dedicação exclusiva e bancando as suas pesquisas dentro da instituição, argumentam os consultores da Assentias, que utilizam os dados de sua parceira americana, a Proteínas.
Contratos – A constatação é a mesma do superintendente médico do Hospital Samaritano, José Marcos Masson. Ele diz que, nos hospitais de Cleveland e de Mayo, ambos de primeira linha, todos os médicos são contratados. No hospital da Universidade de Yale, são 85%. Há pouco mais de uma década, apenas 15% eram contratados. Os hospitais americanos chegaram à conclusão de que, para reduzir custos, era preciso fortalecer os vínculos com os médicos.
Burmester, do Proahsa, que oferece cursos de gerenciamento hospitalar, dá um exemplo concreto: cada médico gosta de um tipo de fios de cirurgia, que varia em material e espessura. Os fios são comprados e ficam todos no armário. Ninguém sabe se, e quando, os médicos que preferem um, ou outro, os utilizarão. Muitos perdem a validade. Isso acontece em grande escala com todos os recursos dos hospitais brasileiros.
Caixa-preta – Junte-se a corrupção à má gestão e ao desperdício, e o que se tem é a caixa-preta da saúde no Brasil. É nessa selva que entrarão os gigantes americanos. A Cigna juntou-se ao Banco Excel-Econômico para comprar a Golden Cross, num negócio de US$ 100 milhões; a Aetna fez parceria com a Sul-América; e a AIG aliou-se à Unibanco Seguros, para comprar os convênios Gama e Hospital. “Isso é só um ensaio”, diz Scheffer, do Conselho Nacional de Saúde.
As preocupações de todos os entrevistados do Estado convergem para a falta de regras – mantida no projeto de regulamentação – para a entrada das seguradoras.
Ao contrário do que ocorre nas telecomunicações, na energia elétrica e nas estradas, não há exigências de investimentos em infra-estrutura hospitalar, nem uma agência para supervisionar a qualidade do atendimento.
A Superintendência de Seguros Privados (Susep), do Ministério da Fazenda, estará encarregada de supervisionar também os convênios, mas seu foco é meramente contábil, dirigido para a análise da reserva de capital.
“A qualidade vai decair para as classes A e B, que hoje usufruem de atendimento razoável”, resume Aerton Paiva. Enquanto isso, as classes C e D estarão desprotegidas, com “planos mínimos que não garantem nada”, completa Mário Scheffer.