Ex-vizinho de Bin Laden quer ser mulá

Da casa e do haras do chefe terrorista em Jalalabad, só restam ruínas

JALALABAD – Árvores frondosas e campos de cultivos demarcam os dois lados da estrada que leva à Vila Yunas Khalis, na periferia de Jalalabad. Hoje, as casas por trás de muros altos, que um dia abrigaram combatentes da Al-Qaeda que vieram com suas famílias, estão abandonadas. Entre elas, a de Osama bin Laden, que ocupava um quarteirão inteiro, e hoje está reduzida a paredes semidestruídas.

Com a queda dos taleban e a fuga dos terroristas, há três anos, funcionários do novo governo da província de Nangarhar vieram retirar os móveis, portas, tetos e tudo o mais que podia ser arrancado – e supostamente doado para escolas – das cerca de 40 casas. Até o imponente haras, onde Bin Laden e seu braço direito, o jordaniano Abu Musab al-Zarqawi, mantinham seus cavalos árabes e afegãos, foi dilapidado.

Por último, Yunas Khalis, o mulá que dá nome à vila, teve de deixar sua casa, e partir para o exílio no Paquistão, há um ano, depois de ter convocado a jihad contra os americanos. Até então, Khalis era protegido pelo secretário de Segurança da província, Hazarat Ali, antigo seguidor do mulá. Se não fosse por ele, os americanos teriam prendido Khalis antes.

Ex-oficial do comandante mujaheddin Gulbuddin Hekmatyar, Khalis conheceu Bin Laden durante a guerra contra os russos, nos anos 80. Em meados dos anos 90, quando Bin Laden estava no Sudão, Khalis o convidou para se instalar no Afeganistão, oferecendo-lhe a vila que leva seu nome e apresentando-o para o mulá Mohammed Omar, líder dos taleban, que consolidavam seu domínio sobre o Afeganistão.

Bin Laden, um milionário saudita, não teve dificuldades de impressionar e cativar Omar, um mulá pobre e semi-analfabeto do interior da província de Kandahar. Bin Laden construiu uma mansão para Omar em Kandahar e se casou com uma filha do mulá, elevando a amizade a parentesco. Omar nunca veio a Jalalabad. Aliás, só saiu de Kandahar uma vez, para visitar Cabul. Bin Laden ia até ele quando necessário, em Kandahar. A relação se inverteu. De hóspede, Bin Laden se tornou anfitrião, passando a dar ordens no país.

Os moradores da vila lembram-se das caravanas de veículos japoneses 4×4 que entravam e saíam, mas afirmam que os árabes não conversavam nem se misturavam com os afegãos. Nem mesmo o taxista Nur Agha, que diz ter sido motorista de Khalis durante 16 anos, teve contato com os comandantes da Al-Qaeda. Inicialmente, recordam os moradores, Bin Laden era desconhecido. Eles dizem tê-lo visto várias vezes chegando de táxi comum, sozinho, a sua casa.

Na desolação da vila empoeirada, um dos poucos moradores que ficaram é um vizinho de Bin Laden: Kassim Sierkhod, de 21 anos, que está estudando para ser mulá. Sierkhod, que mora há seis anos com a família na casa ao lado da do milionário saudita, cujo aluguel é de 700 rúpias paquistanesas (US$ 13), ingressou na madrassa (seminário islâmico) em maio de 2001, cerca de quatro meses antes dos atentados de 11 de setembro, que desencadearam a perseguição da Al-Qaeda e a derrubada dos taleban.

“Na época dos taleban, o estudo era melhor”, compara ele. “Havia muitos mulás, comida e livros de graça, e eu morava na madrassa.” Agora, não há mais comida, e Siekhod voltou para a casa do pai, operário da construção civil. “Se os taleban tivessem continuado no poder, eu seria mais importante na sociedade”, reconhece Siekhod. “Mas não me importo com profissão. Quero ser mulá porque gosto da religião.” 

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*