Para analistas, liberdade democrática inclui muitos outros fatores além da disputa entre candidatos
CARACAS
O referendo de hoje é a 15ª consulta popular na Venezuela desde que o presidente Hugo Chávez foi eleito pela primeira vez, em 1998. Essa profusão de votações – duas eleições presidenciais, recall, assembleia constituinte, referendos sobre reformas constitucionais, além dos pleitos normais – impressiona muita gente de fora, incluindo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que mais de uma vez declarou que “não falta democracia” na Venezuela.
Eleições livres é condição necessária para a democracia. Mas, será que é suficiente? O caso venezuelano é exemplar, numa região de democracias jovens e frágeis, e com vários vizinhos visivelmente tentados a seguir os passos de Chávez. “Uma leitura formal pode levar a pensar que eleições e disputa entre candidatos bastam para caracterizar uma democracia”, analisa o cientista político Carlos Romero. “Mas a democracia inclui muitas outras coisas, que têm sido violadas pelo governo venezuelano.”
Para começar, observa Romero, os outros poderes não são independentes do Executivo. O último cooptado foi o Conselho Nacional Eleitoral, que antes tinha composição equilibrada, e agora apenas um de seus cinco membros, Vicente Díaz, representa a oposição. Os outros defendem os interesses do governo. Com isso, a máquina do Estado engaja-se livremente na campanha eleitoral, utilizando prédios, veículos, recursos e funcionários de todos os ministérios, além da mídia estatal e das verbas de propaganda oficial.
Em várias partes da Venezuela, os chavistas não reconheceram a eleição de governadores e prefeitos de oposição, impedindo-os de tomar posse ou dificultando sua administração. Sedes de governo, equipamentos, verbas de serviços descentralizados, como a saúde, foram confiscados pelo governo central. Oposicionistas, jornalistas, universidades e até a Igreja Católica são alvos de ataques e ameaças de setores ligados ao governo, que nunca são punidos, aponta Romero. “O problema não é só o exercício da democracia em matéria eleitoral”, enfatiza o cientista político. “É a vida cotidiana.”
“A Venezuela ainda não é uma ditadura, mas já não é uma democracia”, define o historiador Manuel Caballero, autor de mais de 50 livros. Citando a filósofa política alemã Hannah Arendt, ele observa que o “lúmpen”, a classe abaixo dos trabalhadores formais, “busca mais representatividade seguindo um líder”. Ele lembra que os ditadores Adolf Hitler e Benito Mussolini, assim como o argentino Juan Domingo Perón e o peruano Alberto Fujimori, populistas que atropelaram as instituições de seus países, “chegaram ao poder pela via democrática”.
O referendo de hoje acentua uma característica de Chávez, observam os analistas: o seu personalismo. O presidente apresenta-se como insubstituível. Sem ele, a “Revolução Bolivariana” desapareceria e, com ela, as chances da Venezuela de ser um país justo e desenvolvido.
Ao justificar a necessidade de continuar governando além de 2013, quando termina seu segundo mandato, Chávez reproduziu uma advertência que lhe teria feito o líder cubano Fidel Castro, que governou a ilha entre 1959 e 2006: “Se o matam, Chávez, ou lhe acontece algo, essa revolução retrocede, cai, porque ainda não tem a solidez para ir adiante sem você.”
O jingle de campanha em favor do “sim” traz o seguinte verso: “Não temos mais opções entre a terra e o céu. Sim, o comandante fica.” Uma das camisetas usadas pelos chavistas afirma: “Com ele, tudo. Sem ele, nada.”
Chávez tem revestido esse personalismo de uma aura religiosa. Ao criticar grupos chavistas que cometem atos violentos, ele se queixou de eles usarem “o sacrossanto nome da Revolução”.
Historicamente, o nome de Simón Bolívar, constantemente evocado por Chávez, tem estado envolto nessa aura religiosa, afirmam vários estudiosos venezuelanos. Ao contrário do que aconteceu nos países vizinhos, profundamente católicos, a Igreja sempre teve penetração relativamente pequena na Venezuela – por vários fatores, incluindo a dispersão de sua população, no período colonial, por um vasto território.
Fortemente influenciada pela maçonaria e por idéias liberais, a elite política venezuelana oficializou a separação entre Estado e Igreja em 1870, e legalizou o divórcio em 1904 – muito antes que os países vizinhos. “O vazio religioso foi preenchido pelo culto ao Libertador”, explica Caballero, referindo-se a Bolívar. Em seus dramáticos discursos, Chávez soa messiânico e associa-se ao martírio cristão, como quando disse, no comício de encerramento da campanha, na quinta-feira: “Domingo vocês vão decidir meu destino político, e se saberá se Hugo Chávez fica ou vai. Minha vida é de vocês. Façam com ela o que quiserem.”
Os analistas reconhecem que o fenômeno Chávez demonstra que a democracia não tem alicerces tão sólidos na Venezuela como se supunha. Resta saber se o que eles consideram como o “autoritarismo” de Chávez pode espraiar-se para os países vizinhos. Apesar de Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, no Equador, trilharem caminhos semelhantes, Romero acha que o modelo chavista não será reproduzido.
O cientista político aponta seis diferenças: nenhum outro governante, nem mesmo Morales, goza da liderança de Chávez; a oposição nos outros países é bem mais forte que na Venezuela; a esquerda nos países vizinhos limitou o papel das Forças Armadas, enquanto na Venezuela elas se politizaram; a iniciativa privada é respeitada nos outros países, e as opiniões divergentes são toleradas; o Estado venezuelano concentra muito mais poder, graças ao petróleo.