Freio e contrapesos

A reação da imensa maioria dos americanos, independentemente de em quem votaram, é de tranquilidade, quando não de otimismo

Milhares de pessoas têm protestado em várias cidades americanas contra a eleição de Donald Trump. As frases impactantes, como “não é nosso presidente”, e as imagens de depredações, confrontos com a polícia e prisões provocam uma sensação no restante do mundo de que a eleição de Trump causa instabilidade nos Estados Unidos. Mas isso não é verdadeiro.

A reação da imensa maioria dos americanos, independentemente de em quem votaram, é de tranquilidade, quando não de otimismo. Como me disse em Miami Chris Aneiros, um representante comercial de 32 anos, eleitor de Hillary Clinton: “Quando você está num avião, você não torce para que o piloto o derrube”. É isso o que espera a maioria dos americanos: que Trump se revele um bom piloto, e o avião siga seu curso, sem grandes turbulências.

Essas eleições foram mais importantes para os americanos do que outras, principalmente porque está em jogo o equilíbrio de forças na Suprema Corte, que interpreta a Constituição sobre temas como aborto, casamento entre homossexuais e controle de armas. Os senadores republicanos, que dominam a Câmara dos Deputados e o Senado, impediram Barack Obama de preencher a cadeira vaga deixada pela morte do juiz conservador Antonin Scalia, em fevereiro. A Suprema Corte está dividida hoje entre quatro liberais e quatro conservadores. Trump poderá manter a balança pendendo para os conservadores por muito tempo, tendo a oportunidade de nomear talvez pelo menos três juízes. Poderá haver mudanças também na economia, com cortes de impostos, fim do Obamacare, que obriga todos a ter planos de saúde e subsidia os que não podem pagar integralmente, aumentos de tarifas alfandegárias para conter as importações e políticas mais duras em relação aos imigrantes.

Mas a maioria dos americanos não acredita que Trump possa tomar medidas extremas. E essa confiança tem como base a experiência. O próprio Obama, primeiro presidente negro na história do país, que se elegeu com base em uma plataforma de mudança, produziu muito pouca mudança de verdade. As principais exceções são o próprio Obamacare e a retirada das tropas do Iraque. Muitas promessas não foram cumpridas, como aprovar uma nova lei de imigração e fechar a prisão de Guantánamo.
Isso ocorreu, em grande parte, porque Obama não tinha maioria na Câmara nem no Senado. Mas, num certo sentido, para suas propostas mais ousadas, Trump também não tem: suas ameaças contra o livre-comércio vão contra os princípios do Partido Republicano. Sua promessa de construir um muro na fronteira com o México não é factível. Trata-se de uma fronteira de 3.201 km, boa parte passando por áreas desérticas. Não estamos mais na antiguidade, quando se erguiam barreiras monumentais como essa, usando trabalho escravo ao longo de décadas. Esse muro custaria bilhões de dólares, e Trump não tem como obrigar o México a pagar pela obra, como prometeu.

Aquilo que Trump pode de fato executar, porque terá aceitação do Congresso e não será bloqueado pela Suprema Corte, pode produzir mudanças, para o bem ou para o mal, mas não vai transformar radicalmente a vida dos americanos. Já as ideias mais tresloucadas simplesmente não sairão do mundo da retórica, ao qual pertencem. É o que aqui se chama de “checks and balances”, ou freios e contrapesos: o Legislativo e o Judiciário não permitem que o presidente tenha poderes excessivos.

Além desses limites institucionais, há um outro, que é da ordem do funcionamento da economia: a capacidade do governo federal de interferir nas atividades econômicas não é tão grande, simplesmente porque o Banco Central e as agências reguladoras são independentes, muitas atribuições estão descentralizadas entre os Estados e os condados e, mais importante ainda, porque boa parte dessas atividades está nas mãos da iniciativa privada.

Talvez no Brasil e na Europa se dê mais importância a eleições do que nos Estados Unidos, por causa da capacidade de interferência do Estado na economia e na vida das pessoas. Os americanos acreditam que se algo vai ou não vai bem em suas vidas isso está mais relacionado com seu desempenho pessoal, ou mesmo com a sorte, do que com essa ou aquela medida do governo.

Tanto que, apesar do significado especial dessas eleições, do seu peso determinante no destino da Suprema Corte, da imensa polarização, da presença inusitada de um candidato como Trump, e de toda a controvérsia em que Hillary se envolveu por causa dos e-mails, o comparecimento às urnas foi de apenas 56,9% – um pouco menor até do que em 2012, quando alcançou 58,6%, e do que em 2008, 62,2%.

Antes da contagem dos votos, muitos eleitores manifestaram até mesmo repulsa por Trump, por suas posições consideradas ofensivas às mulheres, aos homossexuais, pessoas com deficiência, latinos e muçulmanos. Esses sentimentos continuam existindo e são o combustível para as manifestações. Mas, uma vez decidida a eleição, e mesmo Hillary tendo vencido por 340 mil votos, não há questionamentos sérios nem sobre a vitória de Trump nem sobre o sistema do Colégio Eleitoral. É isso o que caracteriza uma democracia madura: a aceitação das regras do jogo e do resultado, não importando por que margem. E, quanto mais fortes as instituições, tanto políticas quanto econômicas, menos importantes as pessoas.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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