Colapso venezuelano

Brasil precisa elaborar com urgência um plano de contingência para uma possível crise humanitária de grandes proporções na Venezuela

O Brasil precisa elaborar com urgência um plano de contingência para uma possível crise humanitária de grandes proporções na Venezuela, associada ou não a um conflito armado. A resposta demandará um nível de coordenação sem precedentes, bem maior, por exemplo, do que a realização da Copa e da Olimpíada – eventos de data marcada com ampla antecedência. Envolve, num primeiro momento, os governos federal, de Roraima e Amazonas, ao menos dez municípios em cada um desses Estados, as Forças Armadas, a Polícia Federal, as polícias estaduais, a Defesa Civil, a Vigilância Epidemiológica, Conselhos Tutelares e demais órgãos ligados à saúde e à assistência social.

A situação na Venezuela entrou em nova fase, a partir da decisão do Conselho Nacional Eleitoral, controlado pelo governo, de impedir a realização neste ano do referendo revogatório do mandato do presidente Nicolás Maduro. No ano que vem, o mandato presidencial terá ultrapassado a metade e, mesmo que os eleitores votem pela saída do presidente, como preveem as pesquisas, não se realizarão novas eleições. O presidente será substituído pelo seu vice, por ele nomeado – atualmente, Aristóbulo Istúriz, tão chavista quanto Maduro. A oposição não aceita essa manobra.

Os manifestantes criticam a suspensão do referendo revogatório do mandato de Maduro | REUTERS/ Christian Veron

A Assembleia Nacional, dominada pela oposição, abriu um julgamento contra Maduro. Mas o presidente é protegido pelo Tribunal Supremo de Justiça, controlado pelos chavistas, que anula as decisões da Assembleia. Centenas de milhares de pessoas se manifestaram na quarta-feira nas principais cidades do país a favor do referendo neste ano e da saída do presidente. “Se nos roubam o direito de votar, passamos a outra etapa na Venezuela”, sentenciou o principal líder da oposição, Henrique Capriles.

Diante da convocação de greve geral para a última sexta-feira, Diosdado Cabello, vice-presidente do governista Partido Socialista Unido da Venezuela, afirmou: “Conversei sobre isso com o presidente. Empresa que pare, empresa que será tomada pelos trabalhadores e pelas Forças Armadas.”

Na quinta-feira, a oposição pretende realizar nova marcha, dessa vez até o Palácio de Miraflores, para supostamente entregar a Maduro o comunicado de sua destituição pelo Parlamento. Desde a tentativa de golpe contra Hugo Chávez, em abril de 2002, as cercanias do palácio se tornaram domínio dos chavistas. Eu estava lá naquela época, e em muitos outros momentos conturbados na Venezuela, e presenciei a ação de milicianos, que chegam em motos, com walkie-talkies, cassetetes e pistolas, para transformar manifestações pacíficas em distúrbios violentos, e assim justificar a repressão pela Guarda Nacional Bolivariana.

Igualmente explosivo é o conflito entre forças policiais municipais e estaduais, controladas pela oposição, e as forças de segurança federais. As Forças Armadas “Bolivarianas” foram politizadas por Chávez, que expurgou os oficiais que não lhe pareciam leais.

Premida pela falta de moeda forte, a Venezuela tem três taxas de câmbio. O governo decide quem pode transacionar com o dólar a 10 bolívares (taxa administrada) e vender a 658 (flutuante) ou a 1.417 (paralelo). Essas faixas geram enormes lucros para os oficiais, que foram colocados pelo governo nos negócios de importação e distribuição. Assim, as Forças Armadas têm motivos políticos e econômicos para impedir a alternância de poder. Nos bairros pobres, a distribuição está a cargo de militantes chavistas, e muitos moradores se queixam de não receber as cestas básicas por não serem governistas.

O colapso do abastecimento, do emprego e da renda só não produziu uma explosão social e uma fuga em massa dos venezuelanos para os países vizinhos porque deu origem a uma nova ocupação que permite a sobrevivência dos pobres: os bachaqueros (o nome vem da formiga tanajura, que carrega carga), que pegam imensas filas ou atuam no contrabando, para revender os produtos para quem tem algum dinheiro.

Conforme a crise se agrava, com o esgotamento das reservas cambiais, essa válvula de escape está se fechando. Daí a entrada de 30 mil venezuelanos em Roraima, desde o início do ano passado. Conforme o Estado mostrou em reportagem há duas semanas, muitos dormem nas ruas de Pacaraima, na fronteira, e da capital, Boa Vista, não encontrando trabalho e sobrecarregando serviços públicos, já em colapso pelo corte de verbas federais.

Essa onda de migrantes tende a aumentar. Pode se transformar em avalanche humana em um cenário, muito provável, de aumento das manifestações, violenta repressão e confrontos com o governo, conduzindo ou não a um conflito armado em grande escala. O Brasil não está preparado para isso. Improvisar seria desastroso. Basta ver a Europa.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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