A guerrilha colombiana mergulha na política

Com a criação do partido das Farc, a Colômbia tenta superar um conflito de 50 anos. Mas, se depender dos eleitores, os ex-guerrilheiros não terão apoio

Guerrilheiros das Farc: conquistar votos será uma tarefa difícil | Mario Tama/ Getty Images

BOGOTÁ — Encravada na região central da capital colombiana de Bogotá, a favela La Perseverancia é uma comunidade que sempre teve uma forte ligação com os movimentos populares de esquerda. Nos anos 70, por exemplo, os moradores foram protagonistas de uma grande resistência contra as várias tentativas de despejo do local. Era de esperar que a população da comunidade fosse simpática à entrada na política da antiga guerrilha comunista do país, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Na prática, não é o que ocorre.

Em La Perseverancia — como em toda a Colômbia —, a maioria das pessoas vê com ressalva a ideia de votar nos ex-guerrilheiros. No começo de setembro, as Farc tornaram-se um partido político e foram rebatizadas de Força Alternativa Revolucionária do Comum, nome mais adequado para disputar o poder pela via democrática. Mas conquistar o apoio de eleitores será bem mais complexo do que pegar em armas.

O principal ponto de desentendimento são as concessões feitas à ex-guerrilha pelo atual presidente do país, Juan Manuel Santos, em troca da paz. Muitos colombianos discordam das vantagens recebidas pelas Farc. As penas de prisão para os guerrilheiros condenados por crimes foram substituídas por trabalho comunitário e por uma liberdade vigiada. Durante dois anos, os combatentes desmobilizados receberão um pagamento mensal de 664.000 pesos colombianos (ou 711 reais), valor equivalente a 90% do salário mínimo no país.

Além disso, o novo partido terá uma presença mínima no Congresso, ainda que não receba nenhum voto. Cinco das 166 cadeiras da Câmara dos Deputados e outros cinco dos 102 assentos no Senado serão destinados ao grupo. A regra vale para as duas próximas eleições, em 2018 e 2022. “Acho injusto. Não se pode perdoar – dessa forma tantas coisas ruins que as Farc fizeram — tantas mortes, violações, torturas, sequestros”, diz Juan Sebastián Cardoso, de 32 anos, que nasceu em La Perseverancia e trabalha numa montadora de automóveis.

 

Costurado pelo governo colombiano, o acordo de paz levou cinco anos para ser concluído e rendeu ao presidente Juan Manuel Santos o Prêmio Nobel da Paz de 2016. A população rejeitou o acordo em um plebiscito em outubro do ano passado por uma diferença ínfima: 50,2% votaram contra e 49,8%, a favor. O presidente Santos ignorou o resultado e conseguiu a aprovação do acordo no Congresso, colocando fim a um conflito de cinco décadas que provocou mais de 220.000 mortes e levou ao deslocamento de 7 milhões de pessoas.

Mas, desde a aprovação do acordo no Congresso, as divisões em relação à ex-guerrilha se aprofundaram. Apenas 12% dos colombianos dizem ter hoje uma imagem favorável do partido das Farc, de acordo com uma pesquisa recente do Instituto Gallup, especializado em sondagens de opinião. Mesmo entre os que apoiam o acordo, é raro encontrar um entusiasta do partido. Um exemplo é o colombiano Leonardo Fajardo, de 35 anos, dono de uma lan house em La Perseverancia. Ele afirma que não votaria no partido das Farc, apesar de aplaudir o acordo. “Com o fim da guerra, haverá mais oportunidades para as pessoas”, diz.

Sem aliados

Não será a primeira vez que uma guerrilha vira um partido político na Colômbia. Em 1990, o grupo Movimento 19 de Abril (M-19) entregou as armas e se tornou o partido Aliança Democrática M-19 (ADM-19). Sua acolhida pelos eleitores, no entanto, foi muito mais calorosa do que está sendo a das Farc. Com nove meses de vida, a ADM-19 conquistou 28% dos votos na eleição da Assembleia Constituinte.

Hoje, o partido é liderado pelo senador e ex-guerrilheiro Antonio Navarro Wolff. Em entrevista a EXAME, o senador culpou as próprias Farc pela rejeição que enfrentam. “Eles impuseram condições demais no acordo de paz. Nós, não. Apenas entregamos as armas em troca de nos tornarmos um partido legal”, diz Navarro. O senador afirma que não tem interesse em se aliar às Farc no Congresso nem nas próximas eleições presidenciais. As Farc não lançarão candidato próprio à Presidência e pretendem firmar alianças com correntes de esquerda. Mas, se nem os antigos guerrilheiros querem conversar com as Farc, fica difícil imaginar quem vai querer. “Ninguém quer se associar à imagem deles. É muito negativa”, afirma o senador.

A impopularidade das Farc é explicada pela devoção que a população colombiana tem pelos militares — resultado do conflito armado. Na pesquisa Gallup, as Forças Armadas aparecem como a instituição de maior credibilidade, com 75% de aprovação, acima até mesmo da Igreja (57%), num país profundamente católico. Luis Eduardo Celis, analista do conflito e do processo de paz na entidade Redprodepaz, observa que o acordo tem mais apoio entre a classe média, os setores mais modernos do empresariado e nas áreas rurais mais afetadas pela luta armada.

Em contrapartida, é mais rejeitado entre os pobres das grandes cidades, que assimilaram o discurso da direita populista, liderada pelo ex-presidente Álvaro Uribe, e também pelos grandes fazendeiros, que se incomodam com a reforma agrária defendida pelas Farc.

Outro desafio paralelo é substituir o plantio da coca, antes protegido pela guerrilha. Desde 2015, a área de cultivo da planta vem crescendo. Naquele ano, eram 96.000 hectares. Hoje são 145.000, segundo o governo colombiano. “Estamos nadando em coca”, diz Martha Soto, jornalista colombiana autora de cinco livros sobre o narcotráfico. O aumento é atribuído ao fim da fumigação das lavouras com herbicidas, uma ação feita pelo governo colombiano e uma das condições das Farc para negociar a paz. A guerrilha argumentava que a medida prejudicava a saúde dos camponeses e o meio ambiente.

O receio é que, com o fim do conflito, os agricultores que vivem nas áreas controladas pela guerrilha não tenham como sobreviver sem vender coca aos narcotraficantes associados às Farc, o que ampliaria os problemas sociais. “Não são só 7.000 guerrilheiros que ficaram sem nada para fazer, mas também muitas comunidades que viviam à sombra deles. O país precisa de uma política agrícola para oferecer uma alternativa a elas”, diz Roberto Vélez, gerente-geral da Federação Nacional de Cafeicultores. O acordo de paz era um passo necessário para superar o conflito. Mas o prejuízo provocado pelas Farc levará muitos anos para ser desfeito.

Publicado na Revista Exame online. Copyright: Grupo Abril. Todos os direitos reservados.

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