Em vez de tirarmos conclusões sobre o que observamos, criamos uma verdade customizada para sustentar nossas conclusões
A onda de populismo que arrasta as democracias ocidentais está relacionada às transformações tecnológicas, que têm relegado a fatias importantes da sociedade trabalhos de pior qualidade, como é o caso no deslocamento do setor industrial para o de serviços. Nos países desenvolvidos, pela primeira vez desde a 2.ª Guerra, pais não se sentem reconfortados com o fato de que seus filhos terão uma vida melhor que a deles. Pelo contrário. Assim como ocorre dentro de sua própria geração, têm a sensação de que as coisas vão piorar, de que será mais difícil encontrar um bom trabalho.
No caso dos EUA, em que a renda familiar corrigida da classe média é a mesma dos anos 60, a simples estagnação já é percebida como retrocesso, já que as necessidades de hoje, com saúde, educação e o consumo em geral são infinitamente maiores que as de meio século atrás.
Tudo isso, por si, não seria suficiente para engendrar a onda de populismo. Se houvesse espaço para uma troca efetiva de informações e argumentos, os políticos apoiados por dados, diagnósticos e propostas coerentes venceriam com relativa facilidade os que oferecem soluções fantasiosas com base em descrições falsas da realidade. O problema é que esse espaço se estreitou nos últimos anos. E isso é resultado de outra transformação tecnológica, na comunicação.
Quando alguma incômoda verdade escapa ao controle do algoritmo, que distribui os compartilhamentos segundo os gostos de cada um, com um clique o usuário exclui o intruso, para se manter, assim, protegido em sua bolha cognitiva.
Impacto. Vivemos, então, no mundo da “pós-verdade”, no qual fatos e invenções adquirem o mesmo peso e são escolhidos de acordo com a preferência ideológica. É uma inversão da ordem do conhecimento: em vez de tirarmos conclusões sobre o que observamos, criamos um material apropriado, uma verdade customizada, para sustentar nossas conclusões.
Essa abordagem do mundo é tão sedutora que até o jornalismo independente, observa a Economist, tem embarcado nisso, dando, em nome de um falso pluralismo, o mesmo espaço para fatos e invenções, como se tudo fosse uma questão de “opinião”.
Saímos de um extremo, no qual o jornalismo profissional tinha o monopólio sobre a informação, e nem sempre fazia o melhor uso dele, e caímos noutro extremo, em que as fontes de informação se dispersaram de tal maneira que se torna um desafio investigativo rastrear suas origens e intenções.
Quando trocou de guarda, recentemente, o Ministério do Planejamento divulgou as planilhas dos pagamentos que o governo anterior fazia a sites e blogs para disseminar suas versões com a embalagem de notícias, de produtos jornalísticos, avidamente consumidos por quem precisava dessa matéria-prima para provar suas teses. Isso é um retrocesso de um século e meio, quando os grandes jornais surgiram como panfletos sustentados por grupos econômicos e políticos para apoiar suas bandeiras, muitas delas meritórias.
Com o passar das décadas, eles avançaram para o modelo de negócios que agora está ameaçado: o de ampliar sua audiência, abraçar o pluralismo, conquistar credibilidade e vender espaços publicitários para empresas que queriam ter suas marcas associadas ao prestígio dessas publicações.
Enquanto o jornalismo independente luta para encontrar um novo modelo de negócios, a maioria dos cidadãos vive numa espécie de embriaguez informativa, sem fronteiras entre real e imaginário, tornando-se muito facilmente manipulável.
Quem se dá bem são mestres da prestidigitação, como Donald Trump, que é capaz de emparedar Hillary Clinton por não ser “transparente” sobre seu estado de saúde, quando ele é menos ainda. E substitui a apresentação de um relatório médico sério pela aparição em um programa de TV, o Dr. Oz Show, no qual entrega um pedaço de papel com algumas linhas falando de sua saúde, o que, no mundo midiático, vale muito mais do que páginas e páginas de informação verdadeira.
Esse é apenas um pequeno exemplo das inúmeras enganações de Trump, cuja plataforma está repleta de promessas irrealizáveis, por serem contra a Constituição e os tratados, porque jamais passariam pelo Congresso e pela Suprema Corte, e porque destruiriam a economia, como cancelar acordos comerciais, expulsar todos os imigrantes ilegais e assim por diante.
No Reino Unido, um pouco mais da metade dos eleitores aprovou a saída da União Europeia com base em dados falsos a respeito dos custos da participação no bloco, das regras comerciais e migratórias – mentiras disseminadas, entre outros, pelo ex-prefeito de Londres Boris Johnson, hoje chanceler.
Nesta semana, no Brasil, vimos como é fácil, divertido e proveitoso inventar uma mentira, como a frase “não temos provas, mas temos convicção”, que nunca foi dita pelos procuradores da Lava Jato. Quem mostrou que nunca foi dita? O jornalismo independente. Quem continua acreditando que foi? A massa que prefere acreditar nos “amigos”. Esse é um enorme desafio para a democracia, porque ela dá poder para o povo escolher com base na crença de que ele terá acesso à informação e optará pelo que é melhor para ele. Esse alicerce está profundamente abalado.
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