Radicalização da ‘revolução bolivariana’ assusta venezuelanos

Apesar de iniciativas sociais agradarem, ação contra a RCTV, repressão de estudantes e escassez minaram apoio a Chávez

 

CARACAS

Depois da derrota de domingo, o presidente Hugo Chávez concluiu que a Venezuela não estava “madura para o socialismo”, e a reforma proposta por ele e pela Assembléia Nacional era “complexa” demais. Em resposta, Leopoldo López, prefeito de Chacao (distrito de Caracas), estrela em ascensão do partido oposicionista Um Novo Tempo, disse que o povo entendeu perfeitamente do que se tratava, e negou que o socialismo fosse uma “necessidade histórica” na Venezuela, como querem os marxistas. Seja como for, o fato é que a radicalização da “revolução bolivariana” assustou muitos venezuelanos, incluindo os mais pobres, como os moradores do Petare, na periferia da Grande Caracas.

“Eu não estava de acordo com alguns artigos, como a desapropriação dos bens dos ricos. Eles também conseguiram suas coisas trabalhando”, disse a dona-de-casa Marisa Hernández, de 52 anos, que mora com a filha, secretária, que a sustenta, e votou em Chávez nas eleições anteriores, mas escolheu o “não” no referendo. “Também não estava de acordo com o governo pegar as crianças de 13 anos”, completou Marisa, aludindo à versão difundida pela oposição de que, com a reforma, o Estado retiraria os rapazes a partir dessa idade de suas famílias para incorporá-los em seus programas.

Marisa gosta de várias iniciativas do governo, como as “casas alimentares”, que dão almoço e lanche para pessoas carentes; a distribuição de material de construção; e um ambulatório novo aberto no Petare, com médicos cubanos e venezuelanos. Por outro lado, diz que, para ser atendida no pronto-socorro, precisa comprar seringas, esparadrapos e medicamentos, que vivem em falta nos hospitais – uma queixa comum dos venezuelanos.

A explosão da violência é outra reclamação constante. Fanny Sanz, de 45 anos, culpa Chávez pela morte dos quatro filhos, vítimas de um esquadrão da morte intitulado Bandos da Cidadania, que atua no Petare e noutros bairros da periferia.

Graciela Alcalá, que tem sete filhos, segue votando em Chávez, mas afirma que o ensino não melhorou. “Toda a vida nossos filhos estudaram em colégio privado”, diz Graciela, de 43 anos, que tem com o marido uma pequena padaria, que lhes rende 50 mil bolívares (US$ 23) por dia. “Sempre votei em Chávez porque queria mudança”, explica seu marido, Carlos Enrique Blanco, de 46 anos. “Nunca votei na AD (Ação Democrática) nem na Copei e nunca votarei”, disse o padeiro, referindo-se aos partidos tradicionais que se revezaram no poder antes da primeira eleição de Chávez, em 1998.

“Essa gente fez tudo o que pôde pelos ricos, enquanto aos pobres nos manteve marginalizados, ‘negrados’; são racistas”, acusou Blanco, de cor negra. Na sua visão, Chávez tem boas intenções, mas está cercado de “corruptos” e de “sem-vergonhas”.

Essa disposição de perdoar Chávez e atribuir os problemas aos que o cercam, que lembra a atitude dos cubanos em relação a Fidel Castro, é comum nos bairros pobres. “Os prefeitos e os governadores chavistas foram contra a reforma porque hoje em dia ficam com 10% do dinheiro das obras, e com a nova Constituição as verbas iriam diretamente para o povo nas comunas”, interpreta Francisco Javier Mendez, um construtor náutico de 54 anos, referindo-se aos “conselhos comunais”. Formas de representação paralelas a assembléias estaduais, câmaras municipais, sindicatos e entidades estudantis, os conselhos populares, diretamente custeados pelo governo central, provocaram a resistência velada de muitos chavistas à reforma.

FÁBRICAS FECHADAS

Mendez foi demitido há cinco meses da fábrica de carrocerias refrigeradas onde ganhava 2 milhões de bolívares (US$ 920) por mês, depois que as montadoras de caminhões (assim como as de carros) fecharam as portas na Venezuela, ao lado de outras 6 mil fábricas desde 1998, segundo a Confederação Venezuelana de Industriais.

“A economia segue adiante”, anima-se o construtor náutico, que continua votando em Chávez e não o culpa por sua demissão nem pela escassez de leite, açúcar e ovos que se abateu sobre o país nas últimas semanas. “São manobras políticas de empresas privadas que tinham o monopólio, impunham seus preços e mandavam aqui havia 50 anos, com a AD e a Copei. Não se muda isso da noite para o dia.”

Assim como em todo o país, Chávez foi o mais votado na eleição presidencial do ano passado no Petare, com 53,58% dos votos, contra 46,15% para Manuel Rosales, seu principal adversário. Já no referendo de domingo, o “sim” obteve, no bairro, 38,51%, enquanto o “não” ganhou com 61,48%. Isso depois de o próprio Chávez ter apostado sua popularidade no referendo, declarando o voto no “sim” um voto nele e no “não”, em George W. Bush.

Em bairros pobres de maior tradição de esquerda, onde o chavismo é mais capilar – assim como os seus programas sociais -, o governo continua vencendo, ainda que com menor margem. No bairro 23 de Enero, extremo oeste de Caracas – onde explodiu o Caracazo, a onda de revolta popular de 1989, e onde Chávez e outros luminares do regime votam -, o “sim” obteve 60,29% dos votos e o “não”, 39,70%. Em contraste, um ano atrás, Chávez massacrou Rosales nesse bairro: 75,57% a 24,06%.

Os números respaldam a tese de Luis Vicente León, diretor do instituto de pesquisas Datanálisis, segundo a qual o teor radical da reforma constitucional e outros episódios no curso da campanha do referendo, como o desabastecimento, a não-renovação da licença da RCTV e a repressão ao movimento estudantil, abalaram a adesão de simpatizantes de Chávez, que não integram o núcleo duro da militância.

 

Chávez, no entanto, já disse que pretende seguir adiante com sua reforma rumo ao “socialismo bolivariano”, ainda que numa versão menos “complexa”.

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