Pressionado por sauditas e iranianos e com um histórico de conflitos, o pequeno país voltou a ser governado por Saad Hariri no dia 22
O simbolismo da data não escapou a nenhum libanês. O primeiro-ministro Saad Hariri voltou ao Líbano e suspendeu sua renúncia no dia da independência do país, na quarta-feira 22, depois de duas semanas e meia de incertezas.
Em uma sequência impressionante de eventos, o líder sunita renunciou à chefia do governo no dia 4, em Riad, depois de se reunir com membros do governo saudita; passou por Paris, onde conversou com o presidente Emmanuel Macron no dia 18, pelo Cairo, com o marechal Abdel Fattah El Sisi, no dia 21, e finalmente suspendeu sua renúncia, ao se encontrar com o presidente cristão, Michel Aoun, em Beirute, dia 22.
O que está em jogo no drama vivido por Hariri é exatamente a independência do Líbano, um país que tem experimentado guerra civil, conflitos e instabilidades constantes por ser alvo de disputas entre potências globais e regionais, que não se cansam de explorar a sua grande vulnerabilidade: sua delicada composição religiosa, com cerca de 40% cristãos, 27% sunitas e outros 27 xiitas, e 6% drusos (uma seita muçulmana).
Ao renunciar, dia 4, em pronunciamento na TV saudita Al-Arabiya, retransmitido pela televisão libanesa, Hariri atribuiu sua decisão à ação da milícia e partido político Hezbollah, e ao seu patrocinador: “Onde quer que o Irã se instale, semeia discórdia, devastação e destruição, provocadas por sua interferência nos assuntos internos dos países árabes”.
Era uma parte da história. Na verdade, Hariri havia sido convocado a Riad pelo príncipe-herdeiro saudita, Mohammad bin Salman, e pressionado a deixar o governo. A medida era ao mesmo tempo uma forma de castigar o primeiro-ministro por ser excessivamente condescendente com o Hezbollah, na visão de Riad, e também de pressionar a milícia xiita a recuar de suas ações militares na Síria e no Iêmen, a serviço dos interesses do Irã, principal adversário da Arábia Saudita.
A pressão sobre Hariri e sobre o Hezbollah foi apenas um dos lances do príncipe-herdeiro, conhecido por suas iniciais MBS, naquele fim de semana, que marcou a consolidação de sua ascensão ao poder no futuro próximo, no lugar de seu pai, o rei Salman. Naquele mesmo sábado, dia 4, o governo saudita anunciou ter interceptado um míssil contra o norte de Riad, disparado do Iêmen pela milícia xiita houthi, apoiada pelo Irã. MBS ordenou ainda a prisão de mais de 200 pessoas, acusadas de corrupção, incluindo príncipes, funcionários do governo e empresários. Um acidente de helicóptero matou um primo dele, o príncipe Mansur bin Muqrin, vice-governador da região de Asir, cujo pai disputara a sucessão com Salman, em 2012.
A investida de MBS contra o Hezbollah, por meio da renúncia de Hariri, foi parte do capítulo externo de sua afirmação como herdeiro do trono saudita. E de um reposicionamento do próprio reino na região, a partir da visita de Donald Trump, em março.
O presidente americano exigiu que os sauditas se distanciassem dos grupos radicais sunitas e endurecessem com o Irã e seus aliados. Em seguida, a Arábia Saudita anunciou o bloqueio contra o Catar, país próximo do Irã, no que foi seguida pelas outras monarquias árabes do Golfo e pelo Irã.
A substituição de um primeiro-ministro conciliador com o Hezbollah por um intransigente, como desejavam os sauditas, poderia levar a um novo conflito armado no Líbano. O país tem um Exército pobre e fragilizado pelas divisões sectárias.
O Hezbollah é uma milícia que hoje dispõe de armamento pesado e grande experiência no terreno, obtida sobretudo na Síria, onde luta desde 2012 ao lado da ditadura de Bashar Assad (alauíta, uma derivação do xiismo). As outras milícias, sunitas, cristãs e drusa, remanescentes da guerra civil (1975-90), conservam apenas armas leves e não têm nenhuma atuação ostensiva.
À medida que os libaneses — sobretudo sunitas, mas também cristãos — compreenderam o que estava em jogo, ou seja, que mais uma vez o Líbano estava se encaminhando para a instabilidade e uma possível conflagração em razão de interesses externos, passaram a manifestar apoio a Hariri. A hashtag #SomostodosSaad passou a ser promovida em cartazes publicitários. Espectadores da maratona de Beirute no dia 12 traziam faixas dizendo “Correndo por você” e “Queremos nosso primeiro-ministro de volta”.
O general Aoun, presidente do Líbano, não aceitou o pedido de renúncia de Hariri, afirmando que só o faria se ele viesse apresentá-lo pessoalmente. O próprio Aoun tem muita experiência nesse jogo da sobrevivência em meio às disputas regionais: de inimigo número 1 da Síria nos anos 80 e 90, ele se tornou “amigo” de Assad e aliado do Hezbollah.
Surgiram rumores de que Hariri estaria detido em Riad. Foi nesse clima que o primeiro-ministro voltou, passando, antes, por Paris e pelo Cairo. Macron fez uma visita-surpresa a Riad no dia 9. Os governos francês e americano compreenderam os riscos envolvidos nas pressões sauditas, e por sua vez pressionaram Hariri a reassumir seu cargo.
E agora?
“A história ainda não acabou”, disse a EXAME o cientista político libanês Rami Khoury, professor da Universidade Americana de Beirute e pesquisador da Universidade Harvard (EUA). “Hariri está consultando outras pessoas.” Estão previstas eleições para maio. Até lá, essa situação de incerteza continuará.
“Os sauditas estão usando Hariri e o Hezbollah como alavancas para pressionar o Irã. Não vai funcionar. O Irã enfrenta isso há mais de 30 anos. Os sauditas são novos nisso.”
Um diplomata europeu concorda com o analista libanês. “Os sauditas não têm uma estratégia no Líbano. A forma como eles lidam com as coisas é ditada por sua impulsividade e frustrações”, disse o diplomata à agência France Presse, sob condição de anonimato. “O Líbano é o reino do consenso frágil, algo que os sauditas odeiam. Eles querem conter o Hezbollah, mas toda vez que tentam, perdem terreno.”
Já o Líbano é vulnerável às pressões sauditas, admite Khoury. “O Líbano tem muitas ligações comerciais e financeiras com os sauditas. Eles têm centenas de milhões de dólares em depósitos no Banco Central libanês.” Além disso, mais de 400.000 libaneses trabalham nos países do Golfo, e enviam entre 6 e 7 bilhões de dólares ao ano para o país, o que representa 14% de seu PIB. A Arábia Saudita tem condições de bloquear essas operações bancárias ou mesmo de expulsar esses trabalhadores.
Khoury no entanto é cético: “‘Isso poderia atingir o efeito contrário ao desejado”, prevê. “Os libaneses poderiam dizer: ‘OK, não precisamos de seu dinheiro’, e os russos, iranianos, turcos ou chineses poderiam entrar para ajudar o Líbano.”
O analista observa que Hariri, primeiro-ministro desde dezembro do ano passado, manteve nesse ano uma boa convivência com o Hezbollah, que faz parte da coalizão chefiada por Hariri. “Não há um problema entre sunitas, xiitas e cristãos. Eles sempre compartilharam o poder, beneficiando-se do convívio”, afirma Khoury. Pela Constituição libanesa, o país deve ser presidido por um cristão; o primeiro-ministro dever ser sunita, e o Parlamento, presidido por um xiita.
“Durante esse ano de governo Hariri abrandou a disputa com o Hezbollah”, analisa Fadi Ahmar, professor de geopolítica na Universidade Libanesa, em Beirute. “Ele não se pronunciou sobre seu arsenal militar.”
Sunitas e cristãos pressionam para que a milícia xiita deponha armas, para reequilibrar as relações políticas com os outros grupos. “Ele não criticou sua participação na guerra da Síria nem sua intervenção no Iêmen”, onde a milícia mantém ao redor de 200 combatentes, que treinam e apoiam os rebeldes houthis. “O presidente Aoun, que foi eleito com apoio de Hariri, deu cobertura ao Hezbollah e lhe permitiu assumir o domínio sobre o governo”, completa Ahmar.
“Os sauditas não estão preocupados com o Líbano”, constata Khoury. “O que os incomoda é a atuação do Hezbollah em outros países.” Depois do anúncio da renúncia de Hariri, o governo saudita impôs como condição para manter relações políticas e econômicas com o Líbano que o Hezbollah, renuncie a sua atuação militar em outros países da região.
O Iêmen é um dos pontos de discórdia. A milícia houthi, apoiada pelo Hezbollah, combate o governo do presidente Abdrabbuh Mansur Hadi. Os sauditas intervieram militarmente no Iêmen em 2015, para apoiar Hadi, que fugiu para Riad por causa da ofensiva dos houthis.
O pai de Hariri, Rafic, foi morto em um atentado a bomba em 2005, atribuído a agentes sírios, quando também ocupava o cargo de primeiro-ministro. Ele tinha construído um império imobiliário, em parceria com investidores sauditas.
Esse império desmoronou nas mãos de Saad. Sua construtora, Saudi Oger, fechou em julho.“Ele não é um empresário particularmente bem-sucedido”, observa Khoury. Mas Hariri ainda é dono do canal de TV Futuro (mesmo nome do partido que ele dirige), e de uma fortuna estimada em 1 bilhão de dólares, segundo a revista Forbes.
De acordo com Khoury, as relações de negócios com a Arábia Saudita não pesaram no episódio da renúncia: “É uma questão política”.
Para Fadi Ahmar, Hariri voltou ao Líbano não só porque não está convencido de que tem de renunciar, mas também porque teme ser preso na Arábia Saudita sob acusação de corrupção, como aconteceu com centenas de sauditas.
Assim como a França o Egito também desempenhou um papel em “liberar” Hariri de Riad e apoiar sua continuação no poder, diz o especialista em geopolítica. O Egito mantém boas relações com Riad desde que os militares tomaram o poder em 2013 das mãos da Irmandade Muçulmana, rival histórica dos sauditas na disputa por influência religiosa sobre os muçulmanos sunitas.
“A volta de Hariri estabilizará por um tempo a situação no Líbano”, prevê Ahmar. “Mas acho que o Líbano continuará em conflito com a Arábia Saudita e os outros países do Golfo, com um impacto negativo sobre a economia e talvez as finanças.”
Os libaneses estão acostumados a terem o seu destino subordinado aos interesses de potências globais e regionais. Mas não deixa de ser aflitivo ver mais um capítulo dessa história.
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