‘Pensávamos que os americanos fossem como os russos’, diz vendedor de autopeças
CABUL – O posto do soldado Ahmed Chabir – um barraco de madeira – ocupa uma posição estratégica, na Rodovia do Norte, distrito de Sarai Khodjai. Por aqui, há três anos, os milicianos da Aliança do Norte entraram em Cabul. “Os aviões americanos bombardeavam a área, os taleban fugiam e nós íamos avançando”, lembra Chabir, que na época integrava a Aliança, e conta ter matado dois taleban no campo em frente de onde monta guarda agora, com a farda do Exército afegão.
O chefe de sua milícia, o tajique Amanullah Gusar, que comandava cerca de 4 mil mujaheddin (“combatentes da liberdade”), integrou-se ao Exército nacional há dois anos. Chabir e seus companheiros foram submetidos a 45 dias de treinamento por oficiais afegãos e incorporados ao Exército. Atualmente, seu soldo equivale a US$ 45. Dentro de dez dias, no entanto, Chabir pretende ingressar no novo Exército Nacional Afegão, que está sendo formado com patrocínio e treinamento dos EUA. A partir daí, diz ele, seu soldo subirá para US$ 150 – uma pequena fortuna para os padrões afegãos.
Chabir está otimista. “Nosso futuro é brilhante”, diz o soldado, cujo posto fica ao lado de um imenso cartaz do general Ahmad Shah Massoud, o líder da Aliança do Norte morto por dois suicidas da al-Qaeda no dia 9 de setembro de 2001, dois dias antes do atentado contra as torres gêmeas, em Nova York. Nesses dois anos, não houve nenhum incidente na área, relata o soldado. Mesmo tendo lutado com os taleban, Chabir, de 30 anos, não acha que eles devam ser excluídos do novo Afeganistão. “Será bom se eles se juntarem”, declara o soldado. “Eles também são afegãos e podem nos ajudar a reconstruir o país.”
O alfaiate Djamshed Nur Mohammed, de 19 anos, também está confiante. Há apenas uma semana, ele abriu uma pequena confecção na margem da rodovia. Djamshed e sua família, no total dez pessoas, voltaram há três meses de Teerã, onde viviam desde 1998. Eles se mudaram para a capital iraniana porque um de seus irmãos matou um homem em Teerã e foi condenado à morte. Não conseguiram entrar na prisão para se despedir antes da execução. Mas acabaram ficando.
“Não havia trabalho aqui na época do Taleban”, diz Djamshed, que está pagando 2 mil afganis (US$ 40) por mês de aluguel na loja. “Temos esperança de que nosso negócio dê certo”, diz o rapaz, que costura os vestidos de mulheres – com desenhos impensáveis na época dos taleban -, enquanto seu irmão faz os shaluar kamiz, a túnica e calça larga usada pelos homens.
“Karzai é o melhor candidato, porque trouxe paz”, diz o alfaiate de etnia tajique, oferecendo uvas de sua cidade natal, Mirbachakot, no norte do Afeganistão. “Quando Karzai tiver tornado o país seguro, não precisaremos mais dos estrangeiros aqui e será melhor eles irem embora. Os americanos nos ajudaram a expulsar os taleban, e estamos gratos a eles. Agora estamos refazendo nosso país.”
“Estamos tranqüilos com a presença dos americanos porque eles vieram trazer a paz”, confirma o pashtun Nurullah Djamdarhan, desempregado, que também voltou do Paquistão há quatro meses. “Quando vemos os americanos, ficamos felizes, porque eles estão aqui para zelar pela nossa segurança.”
É muito difícil encontrar um afegão que fale abertamente contra a presença americana – até mesmo na área tribal autônoma, na fronteira com o Paquistão, onde há três anos os pashtun prometiam enfrentar os americanos e explodir-se na frente dos seus tanques.
“Naquela época pensávamos que os americanos fossem iguais aos russos, mas agora vimos que eles trouxeram paz e segurança”, explica Herat Gul, de 30 anos, vendedor de autopeças no bazar de Torkham. “Se não fosse a Aliança do Norte, os americanos não teriam conseguido entrar no Afeganistão”, contesta um ex-líder taleban local, que, como muitos outros, segue a vida discretamente em seu vilarejo.
Como Djamshed e outros milhares de afegãos, o sapateiro Said Omar também voltou para o país depois da queda dos taleban. Durante o regime fundamentalista, ele se mudou com a família para Karachi, no vizinho Paquistão. “Não havia trabalho, e eles nos prendiam e batiam sem motivo nenhum, inventando um pretexto, só porque somos persas”, conta Omar, de 55 anos. Omar, que mora num acampamento à beira da rodovia, não sabe se o país vai melhorar. “O Afeganistão já mudou tantas vezes”, diz o sapateiro, acrescentando que vai votar em Karzai porque “ele veio para reconstruir o país”.
“Continuamos morando em tendas”, impacienta-se Ghulam Mohammed, que nunca teve casa. “A TV já veio várias vezes nos entrevistar, mas ninguém vem nos ajudar.” Mohammed, que também foi morar em Karachi durante o regime taleban, vive de carregar e descarregar material nas madeireiras da beira da estrada, ganhando no máximo 2.500 afeganis (US$ 50) por mês.
As lojas de materiais de construção são um negócio florescente, com o boom de novas casas e sobretudo de reformas que vem acompanhando a consolidação da paz no Afeganistão, cuja moradia popular é tradicionalmente feita de argila e madeira. “Estão construindo algumas casas pequenas aqui por perto, mas nada mudou”, queixa-se Gul Khan, de 28 anos, dono de uma das madeireiras. “A situação não é boa. Talvez depois da eleição do Parlamento (prevista para maio) a economia possa melhorar”, estima ele. “Quando todos se desarmarem, o poder não vier mais das armas e os direitos humanos forem respeitados, haverá esperança.”
Khan, de etnia pashtun, a mesma do presidente Karzai, também voltou recentemente do Paquistão, mas não de espontânea vontade. O governo paquistanês tem mandado de volta os milhões de refugiados afegãos, argumentando que eles agora “têm um país independente”. Sua mulher e cinco filhos, porém, ficaram em Islamabad, e ele só pretende trazê-los depois que todas as milícias se desarmarem.
Do contingente de 100 mil homens declarado pelo Ministério da Defesa, o programa de desarmamento conduzido pela ONU e patrocinado pelo Japão conseguiu arrolar apenas 24.861. Desses, 12.808 foram desmobilizados. Em geral, os grupos que se sentem contemplados no governo de Karzai entregam as armas e se incorporam às forças regulares. Do contrário, não.
“Esse programa é um completo engodo”, diz Kassim Massumi, líder do partido Congresso Nacional do Afeganistão, com redutos no norte e no sul do país, e candidato a vice-presidente. Segundo Massumi, que é de etnia hazara, proveniente da Mongólia, o governo está recolhendo as armas das milícias do norte e distribuindo no sul, reduto pashtun.
A própria Aliança do Norte, parceira da primeira hora dos Estados Unidos na tomada de Cabul, está dividida. Seu líder de etnia usbeque, o general Abdul Rashid Dostam, ainda não quis entregar as armas, enquanto seus ex-aliados tajiques se mostram plenamente integrados no novo governo. O retrato de Massoud no Aeroporto de Cabul, um dos pontos estratégicos tomados dos taleban pela Aliança, é maior que o do presidente Karzai. Seu sucessor político, Fahim Khan, ocupa o cargo de ministro da Defesa e seu irmão, Ahmad Zia Massoud, acaba de se tornar assessor do presidente.
Telhados de lojas e casas do norte de Cabul exibem bandeiras pretas, em sinal de luto pelo terceiro aniversário da morte de Massoud. Será que o general tajique estaria feliz com o que está se passando no Afeganistão? O pashtun Djamdarhan acha que sim. “Antes de morrer, ele disse na TV que nós precisávamos de democracia.”
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