A experiência venezuelana mostra que a democracia não se sustenta apenas na forma
Assim como a democracia, o autoritarismo se consolida de forma gradual. Como um parafuso, que a cada volta arrocha mais. Raramente na história as ditaduras se instalaram em sua forma definitiva e declarada de um só golpe. A perda da liberdade é um processo lento e doloroso.
Na semana que passou, o chavismo deu mais algumas voltas no seu parafuso. A Assembleia Nacional Constituinte (ANC), eleita em julho numa votação fraudulenta, desenhada para garantir o domínio chavista, antecipou a eleição para presidente de dezembro para abril. Isso, depois que, em novembro, o presidente Nicolás Maduro se lançou à reeleição.
Embora a situação da economia venezuelana seja dramática, ela ainda não chegou ao fundo do poço. A hiperinflação, o alto desemprego, a escassez de comida e remédios tendem a se agravar este ano, com o fim das reservas em moeda forte e a queda na produção de petróleo.
A manobra tem o objetivo de realizar a votação antes dessa deterioração, e também de aturdir e dividir ainda mais a oposição. Formada por 18 partidos, a Mesa da Unidade Democrática (MUD) perdeu a iniciativa, e passou apenas a reagir à hiperatividade do regime em sua manipulação de regras, calendários, verbas e instituições. Mesmo com a falta de tempo e de recursos, parte da MUD tentou realizar eleições primárias neste fim de semana, para escolher um candidato único à eleição presidencial, que agora deve se realizar o mais tardar no dia 30 de abril.
O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) impugnou a realização das primárias em 7 dos 23 Estados, alegando irregularidades. Não contente, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) “autorizou” o CNE a atrasar para depois da eleição a renovação do registro da MUD e dos partidos Primeiro Justiça (PJ), Vontade Popular (VP) e Ação Democrática (AD), os principais da oposição.
O PJ é liderado por Henrique Capriles, que como candidato da MUD quase derrotou Maduro na última eleição, em 2013. Ele teve seus direitos políticos cassados no ano passado. O VP é dirigido por Leopoldo López, preso desde 2014. E a AD, pelo ex-presidente da Assembleia Nacional Henry Ramos Allup. Outro líder popular, Antonio Ledezma, ex-governador de Caracas, também foi preso em 2015, e fugiu no ano passado para a Espanha.
Os chavistas têm demonstrado enorme malícia. No ano passado, depois da eleição da ANC, boicotada por toda a oposição, o regime convocou, com prazo tão curto como agora, eleições estaduais, que deveriam ter sido realizadas em 2016.
A oposição se dividiu sobre participar ou não. Alguns partidos vislumbraram chances de vencer em alguns Estados e seguiram em frente. As pesquisas indicavam que a oposição venceria em 18 dos 23 Estados. Os resultados oficiais deram o contrário: 5 governadores oposicionistas eleitos. Seguindo seu roteiro, a ANC, que não é reconhecida pela oposição nem pela comunidade internacional, ordenou que todos tomassem posse perante ela, de maneira a legitimá-la, quando a lei determina que o façam nas assembleias estaduais. Apenas um dos cinco se recusou.
Em seguida, o regime marcou eleições municipais, e o resultado oficial também foi um massacre: 25 prefeitos oposicionistas eleitos, de um total de 335. O TSJ, sequestrado pelos chavistas, já destituiu 12 prefeitos, incluindo Ledezma, pelo “crime” de não reprimir manifestações contra o governo.
A última eleição justa na Venezuela foi a de dezembro de 2015, quando a oposição obteve a maioria na Assembleia Nacional. Desde então, o regime tem mudado as regras do jogo para continuar ganhando.
A experiência venezuelana mostra que a democracia não se sustenta apenas na forma. Ela é importante, mas pode ser modificada, para melhor ou para pior. Democracia exige adesão a seu espírito, enraizamento na cultura e a ampla convicção de que, mesmo imperfeita, é a melhor forma de convívio.
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