Na zona desmilitarizada, Kim e Moon deram um grito de independência
Desde o início da distensão, o ditador norte-coreano, Kim Jong-un, definiu como objetivo a “desnuclearização da Península Coreana”. No Ocidente, isso foi traduzido como renúncia unilateral do programa nuclear da Coreia do Norte. Pareceu incompreensível, dado o esforço em atingir o status de potência nuclear e o ufanismo com o qual celebrou cada passo nessa direção. Mas não é disso que se trata. A Coreia do Norte exige como contrapartida a retirada do arsenal nuclear americano.
No jargão militar, armas nucleares são chamadas de “ativos estratégicos”, em oposição às armas convencionais, que são táticas. Em uma guerra, empregam-se armas convencionais. O arsenal nuclear tem função de projetar poder, inibir ações inimigas e reduzir as hipóteses de ameaça. A desnuclearização da península é uma decisão não da Coreia do Sul, mas dos EUA. Ao aceitá-la, os americanos abririam mão da supremacia militar na região que concentra seus adversários mais poderosos – China e Rússia – e alguns de seus aliados mais importantes economicamente: Japão, Coreia do Sul e Taiwan.
O Japão, que assim como a Coreia do Sul tem um acordo de defesa mútua com os EUA, perderia o guarda-chuva nuclear americano sem ter nem sequer participado da negociação. Tudo isso é improvável, e todos os atores envolvidos sabem disso. Então, quais os objetivos realistas da reunião de cúpula de sexta-feira entre Kim e o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in?
Os dois reconhecem que a hostilidade entre as duas Coreias as enfraquece, na região do planeta que sofre as maiores transformações. A China está emergindo da posição de potência regional para disputar poder global com os EUA. O Japão se movimenta para garantir sua capacidade de se defender, independentemente dos americanos.
A eleição de Donald Trump, que inicialmente pôs em dúvida a própria disposição de defender o Japão em uma guerra, para depois reafirmar o compromisso com o pacto de defesa mútua, demonstrou a vulnerabilidade do arranjo. E reforçou a percepção de que o período do pós-guerra, do qual o pacto faz parte, chegou ao fim.
O risco de conflito é alimentado pelo nacionalismo do presidente Xi Jinping; pela reivindicação chinesa do arquipélago japonês de Senkaku; pela projeção da China sobre a região, que já abarca a cooptação de aliados da Índia em seu quintal, como Nepal, Sri Lanka e Maldivas; e pelo investimento das imensas reservas chinesas na construção de infraestrutura de uso híbrido, civil e militar, da África Ocidental ao Leste Asiático.
Entre Japão e China está a Península Coreana. Daí a convergência de objetivos das duas Coreias. O pensamento convencional é o de que uma reunificação colocaria a península sob domínio da Coreia do Sul, que tem uma economia cem vezes a do Norte e o dobro da população. Mas, entre unificação e hostilidade, há um espectro de possibilidades. É isso que passa a ser explorado agora em Seul e Pyongyang.
Internamente, isso se tornou possível depois que Kim consolidou seu poder, realizou reformas que produziram relativa prosperidade, mas passou a se preocupar com o cerco das novas sanções. E Moon, defensor da reaproximação, elegeu-se presidente, em maio do ano passado.
Trump disse que podia desistir da cúpula com Kim, prevista para o fim de maio ou início de junho. Na sexta-feira, comemorou no Twitter que a guerra na Coreia poderia acabar e agradeceu a Xi por sua “grande ajuda”. Corre em paralelo a guerra comercial entre EUA e China. Os chineses sempre usaram a Coreia do Norte como uma carta na disputa com os EUA. Não mais. Kim e Moon deram um grito de independência. Ao cruzar a zona desmilitarizada, entraram num terreno inexplorado.
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