A crise na Argentina foi disparada pela combinação de erros da equipe econômica, cenário externo e até a falta de chuvas
O presidente Mauricio Macri anunciou na terça-feira a volta da Argentina ao FMI (Fundo Monetário Internacional). A sigla subiu para as manchetes, com todo o seu humilhante peso simbólico. Mas outra sigla e outra terça-feira é que tiram o sono na Casa Rosada e em “La City”, como os anglófilos argentinos chamam o seu mercado financeiro.
No dia 15 vence metade das Lebacs (Letras do Banco Central), títulos de curtíssimo prazo que são o principal meio de financiamento do governo argentino. O estoque que vence na terça soma 30 bilhões de dólares, ou 5% do PIB.
O drama dá uma dimensão do quanto a Argentina está indo da mão para a boca: esses títulos têm preferencialmente validade de 35 dias. Foram lançados em abril com taxa anual de 26,3%, mas no mercado secundário rendem 40% — o juro básico mais alto do mundo, que subiu três pontos no dia 28, mais três no dia 4 e 6,75 no dia 5.
Para se ter uma ideia, o Tesouro brasileiro oferece títulos com vencimentos que vão de 2021 a 2050, e rendimentos de 4,71% ao ano (mais inflação) a 9,99% (prefixado). E, convenhamos, o Brasil não é exatamente um modelo de segurança. A atual turbulência cambial na Argentina foi desencadeada pela elevação, para 3%, da taxa de juro do título americano de dez anos — a maior desde janeiro de 2014.
O BC argentino queimou 5 dos 65 bilhões de dólares de suas reservas para segurar a depreciação do peso. A gradual subida do juro nos EUA tem levado os investidores na Argentina a sair de suas carteiras em pesos — em geral, Lebacs — para dólares. O impacto psicológico do pedido de socorro ao FMI será medido na terça pelo volume de renovação das Lebacs.
Mas, o que aconteceu com o celebrado governo Macri?
Crises econômicas são como acidentes aéreos: não têm causa única. A montanha russa na Argentina foi disparada pela combinação da terrível herança deixada em 2015 pelo governo populista de Cristina Kirchner, a prioridade dada por Macri às eleições legislativas de outubro do ano passado, alguns erros de coordenação na equipe econômica nos últimos meses, azar (na forma de falta de chuvas) e o impacto externo da elevação dos juros americanos.
Mesmo com os terremotos da Lava-Jato, as incertezas das eleições deste ano, a falta de reformas e o rebaixamento da nota do risco país, os investidores não estão fugindo em massa do Brasil em busca do juro mais alto nos EUA. E a razão disso está menos no controle do gasto público e mais na forma de seu financiamento.
“O Brasil se ajustou”, disse a EXAME a economista Marina Dal Poggetto, diretora da consultoria Eco Go, de Buenos Aires. O déficit das transações correntes do Brasil, que inclui comércio exterior, serviços, remessas de lucros das empresas e de imigrantes, foi de 0,48% do PIB no ano passado. Na Argentina, 5%. “E este ano com a economia moderando o ritmo do crescimento deve ficar acima disso”, prevê a consultora.
Esse rombo externo serve para cobrir um outro, o déficit fiscal, que foi de 3,9% em 2017 (abaixo da meta de 4,2%). Esse é o déficit primário, antes das despesas de juros. No Brasil, o primário foi 1,9% e o nominal, que inclui os juros, 7,8%. O nominal foi menor na Argentina, que se financia externamente: 6,1%.
“Na América Latina, o déficit de conta corrente nunca foi financiável”, observa Dal Poggetto. “Sempre que as economias chegam a esse nível de déficit, em algum momento o mercado realiza lucros. Acho que essa é a principal explicação pela qual o mercado está batendo mais na Argentina do que noutras economias.”
No ano passado, o mercado financiou um aumento do desequilíbrio da conta corrente de 2,5% do PIB para 5%. Além desses 30 bilhões de dólares, outros 15 bilhões entraram para recompor as reservas em moeda forte. Desses, 13 bilhões vieram por financiamento de comércio, e 32 bilhões pela conta de capital, basicamente com colocação de dívida pública em dólares.
“O mercado comprava a história argentina e a única coisa que exigia no ano passado era que o governo ganhasse as eleições (legislativas de outubro)”, lembra a economista. “A sustentabilidade econômica não importava ao mercado, só lhe importava a governabilidade.”
Os candidatos do governo tiveram cerca de 40% dos votos, os kirchneristas, 21%, e os peronistas, 20%. Depois das eleições, entre novembro e dezembro, o governo acelerou os ajustes. Fechou um acordo com os governadores das províncias, incluindo os peronistas, pelo qual elas baixariam os impostos sobre lucros. Em compensação, teriam participação em tributos arrecadados pelo governo central e também a redução dos benefícios das aposentadorias, que foram desindexados, causando protestos.
Um velho fantasma
Mas o fantasma da inflação assolava a Casa Rosada. Macri assumiu em dezembro de 2015 com expectativas nada realistas sobre sua capacidade de domar o dragão. Naquele ano, ela bateu em 28%. O governo prometeu um índice entre 20% e 25% para 2016, entre 12% e 17% para 2017, 8% a 12% neste ano e 5% no ano que vem.
Para não ficar muito longe dessas metas, o governo aplicava taxas de juros altas, enquanto deixava o câmbio flutuar livremente. Com muito suor e sangue, 2017 fechou com inflação de 24,8% (o dobro da meta estipulada no início do governo). O problema é que o juro alto mantinha o peso argentino sobrevalorizado, prejudicando as exportações.
No fim do ano, o dólar furou o piso de 18 pesos, para desespero dos setores empresariais que trabalham com bens “transáveis”, ou seja, vinculados ao câmbio. E eles são importantes na Argentina do trigo, da soja, da carne, do gás e do petróleo. “O risco que se corria era que, se essa valorização continuasse, todos os ganhos de competitividade que as reformas fiscal e tributária estavam rendendo se perdessem por causa da apreciação do câmbio”, disse a EXAME o economista Dante Sica, diretor da consultoria Abeceb, de Buenos Aires. Segundo ele, havia de fato um “atraso” no câmbio.
A partir de 28 de dezembro, concluídas as reformas da Previdência, tributária e fiscal, o governo mudou de política. Ajustou a meta da inflação, de entre 8% e 12% para 15% — um pouco menos distante da realidade. Ao aceitar um aumento da inflação, o governo pôde reduzir os juros (de 28% para 27,25%), para com isso diminuir a entrada de dólares em busca dessa remuneração alta e assim depreciar o peso. Passou também a intervir no mercado de câmbio.
“Nos primeiros meses do ano, quando as moedas do mundo se valorizavam frente o dólar, o peso argentino se depreciou”, lembra Sica. A moeda americana subiu de 18 para 20 pesos. Só que não parou aí. Com a corrida gerada pelo aumento dos juros nos EUA, pulou para 24 pesos. Hoje está ao redor de 23, que Sica considera um patamar equilibrado.
“Talvez o erro tenha sido o BC passar de uma política de câmbio livre na qual só se usava o juro para conter a inflação para um programa em que as intervenções no câmbio passam a ser os principais instrumentos, ao lado dos juros”, observa o economista.
Somou-se a isso um imposto sobre os ganhos financeiros dos residentes estrangeiros, que também incentivou a migração dos papéis em pesos para dólares. Ele foi definitivamente eliminado na quarta-feira 10, com uma nova Lei de Mercado de Capitais, aprovada com ajuda dos peronistas não-kirchneristas. Além do mais, no Congresso, a oposição estava acenando com aprovar uma lei que congelava as tarifas públicas, colocando um freio no ajuste fiscal e nos compromissos que o governo fizera com o setor energético.
“Três ou quatro dias depois que a corrida começou, o BC tomou medidas mais contundentes, intervindo, aumentando os juros, e ante essa percepção de que havia certa descoordenação aumentou a desconfiança”, constata Sica. “O governo deu sinais de que colocou toda a carne na churrasqueira. Esse pedido de empréstimo contingente ao FMI não quer dizer que o governo precise de dinheiro para se financiar. Mas é um sinal que dá ao mercado de que, por um lado, está consciente da crise e fará tudo para freá-la, e que é capaz de fazer frente a todos os problemas.”
Dal Poggetto reconhece que a herança foi muito complicada. “A distorção de preços era muito alta, basicamente um atraso tarifário fenomenal”, diz ela. “Preços de 2001 mantidos em 2015. Esse atraso representava 20% da capacidade de compra dos salários. Ao mesmo tempo o governo herdou um déficit externo e fiscal muito altos.”
A principal vantagem era a dívida baixa, resultado dos calotes e da falta de credibilidade do governo Kirchner. As reservas também eram baixas. Mas havia muita liquidez e o mundo, com a eleição de Macri, estava disposto a financiá-lo.
“Então minha sensação é que no início da gestão houve um diagnóstico que tinha mais a ver com esquema de campanha do que para administrar o país”, recorda a economista. “O presidente distribuiu os objetivos.
A uns mandou baixar a inflação, a outros, corrigir as tarifas e a outros, reduzir o déficit fiscal. Só que os problemas estavam interligados.”
Havia um pressuposto de que as tarifas e a desvalorização do peso não eram inflacionárias. Saíram da âncora cambial e subiram as tarifas. “Claro que isso causaria inflação”, raciocina Dal Poggetto.
Isso se combinou com uma política monetária errática, com vários objetivos. O primeiro ano, 2016, foi marcado pela correção “desordenada” dos preços. O segundo foi orientado mais por um objetivo eleitoral.
O dólar, que estava em 15 pesos, chegou a 18 em julho, quando Cristina Kirchner estava três pontos à frente do candidato do governo ao Senado em Buenos Aires, Esteban Bullrich. Naquele momento, o BC interveio, mas o objetivo político era bombar a economia até as eleições legislativas de 22 de outubro.
Houve um boom de crédito dirigido pelos bancos públicos, que impulsionou muito o consumo, lembra a economista. Os investimentos em setores que estavam com os preços represados começaram a aumentar, sobretudo em obras públicas. Salários e aposentadorias, que haviam perdido para a inflação em 2016, ganharam em 2017.
Os gastos públicos foram expansivos até as eleições em outubro e depois se moderaram. A economia, que havia encolhido 1,8% em 2016, cresceu 2,9%. O governo ganhou as eleições de outubro e o mercado festejou. “Em dezembro a Argentina era a Disneylândia e Macri era o rei”, ironiza Dal Poggetto.
O peso eleitoral
Tudo indicava que o presidente ia para uma reeleição garantida (em 2019). E que poderia fazer os ajustes sem custos políticos. Então elaborou uma agenda de correções bastante concatenada. Seu primeiro ponto é o compromisso com a meta fiscal, sobre dois pilares: o corte de gastos e o aumento de receitas. Para isso, obteve a desindexação das aposentadorias, que representam a metade do gasto público.
O governo retomou a agenda das correções tarifárias, que em 2017 havia ido devagar até outubro e depois se acelerou. Freou os gastos de capital com a aposta de que as obras de infra-estrutura seriam financiadas não com recursos públicos mas com parcerias público-privadas. E estipulou que os reajustes salariais ficassem no patamar de 15%.
Em 28 de dezembro, o BC mudou a meta de inflação, deixou o dólar um pouco mais alto, o juro um pouco mais baixo, para não quebrar os setores produtivos.
“Esse era o plano”, resume Dal Poggetto. “No papel, era bom. Mas, quando se vai para a realidade, algumas coisas nem sempre vão bem. O movimento do câmbio, combinado com a taxa de juros, a mudança nas metas de inflação, e o mundo, em que o custo financeiro de repente aumentou, a taxa de juros de dez anos dos EUA que no fim do ano estava em 2,4% subiu para 3%, tudo isso provocou realização de lucros.”
Ao mesmo tempo, não choveu durante dois meses. A colheita de soja foi 30% abaixo do esperado e a de milho, 15%. Os dólares que sobravam no ano passado, e que financiavam a expansão do consumo, desapareceram. O governo recorreu ao FMI como prestamista de última instância para tentar recuperar a confiança no país. “Mas o que está por trás disso é a necessidade de corrigir o que está super-expandido em termos de consumo”, conclui Dal Poggetto. “Agora vêm as correções.”
Ela explica que hoje se está testando qual a taxa de juros de equilíbrio na Argentina. O dólar, que em dezembro valia 17,50 pesos, e o governo tentou inflar para 20,15, nas últimas duas semanas escalou para 22 a 23. E a taxa de juros, que no início do ano se tentou manter no patamar de 26,5%, hoje está em 40%.
“Estão se desarmando os fundos comuns de investimentos, há uma saída das Lebacs”, observa a economista. “Todo mundo está olhando o que vai acontecer com o vencimento das Lebacs e onde se estabilizará a demanda por pesos. Por ora o BC está intervindo no mercado de futuros.”
Quanto mais rápido sair o acordo com o FMI e o mercado visualizar esses dólares, mais rápido se vai chegar a esse equilíbrio, estima Dal Poggetto. “O mercado, que no ano passado financiava um equilíbrio externo muito alto, agora realiza lucros de forma mais agressiva nos mercados emergentes com contas externas mais complicadas. E não financia mais o excedente de consumo.”
Uma taxa de juro de 40%, a valorização do dólar e seu impacto sobre os preços com certeza se farão sentir sobre o consumo, diz ela. E aí entra em cena a política interna. “No ano passado o mercado exigia apenas a governabilidade. Isso é fácil. Agora está exigindo uma dupla agenda: a governabilidade e a sustentabilidade. Ou seja, ele pede que faça o ajuste e que mantenha a governabilidade. Aí é bastante mais complicado.”
Dante Sica considera que, nos últimos dias, o governo atuou de forma muito mais contundente. O mercado se estabilizou um pouco. “É preciso ver como prossegue a negociação com o FMI. Até a renovação das Lebacs, vamos ter algo de volatilidade. A partir daí se sairá da turbulência financeira, mas com custos.”
Ele prevê que a inflação será mais alta que o esperado, um pouco menor do que no ano passado (24,8%) mas não tanto: entre 23% e 24%. Talvez o crescimento seja menor que o estimado este ano. Sica calcula em torno de 2%. “Mas o importante é dar tempo para o governo rearmar (a jogada)”, diz ele. “Vamos sair com uma taxa cambial mais competitiva. Isso vai favorecer as exportações. Quando a taxa de juros começar a diminuir, vamos fortalecer os investimentos. Isso nos permite estarmos posicionados para ter um 2019 muito mais forte.”
É o ano em que Macri disputará a reeleição com a incansável Kirchner (se não estiver presa por algum de seus vários processos por corrupção, lavagem de dinheiro e abuso de poder). Então é bom já ir fazendo também a dança da chuva.
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