O adulto na sala se cansou de brincar. O general Jim Mattis anunciou que deixará o cargo de secretário de Defesa no fim de fevereiro, de modo a dar tempo para o presidente Donald Trump nomear outro para seu lugar. A gota d’água foi a intempestiva decisão do presidente de retirar tropas americanas da Síria e do Afeganistão.
A carta de Mattis a Trump deixa bastante clara a natureza de sua frustração: “Sempre acreditei que nossa força como nação é inseparável da força de nosso sistema único e abrangente de alianças”.
Um dia antes, na quarta-feira, Trump chocou os aliados dos EUA dentro e fora da Síria com o anúncio — pelo Twitter — da retirada dos 2 mil militares americanos. Os EUA lideram uma aliança de 74 países (sobretudo europeus e árabes) em campanha contra o Estado Islâmico e outros grupos extremistas. O jornal The New York Times revelou depois que seria retirada também metade dos 7 mil militares americanos do Afeganistão.
Apenas uma semana antes do anúncio, o general Joseph Dunford, comandante do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas, afirmava que os americanos precisavam treinar e equipar entre 35 mil e 40 mil combatentes locais (árabes e curdos) que lutam contra o EI e o regime de Bashar Assad. “Há ainda muito a fazer. Estamos provavelmente perto dos 20%.”
Uma fonte síria me disse que os combatentes temem que os americanos levem consigo o armamento pesado por eles usado. A retirada americana representa uma ameaça existencial para o grupo mais combativo e mais leal ao Ocidente na Síria: os curdos. Na semana anterior, a Turquia havia anunciado uma nova ofensiva contra os guerrilheiros curdos no norte da Síria, para “limpar” a fronteira dessa presença inimiga. Os curdos lutam por autonomia no sudeste da Turquia.
Mattis havia conseguido dissuadir Trump de retirar as tropas da Síria e do Afeganistão, em outros arroubos do presidente. Mas havia uma série de outras divergências, como a ruptura do acordo nuclear com o Irã e, inversamente, a credulidade com que Trump abraçou a aproximação com a Coreia do Norte, sem obter garantias nem ganhos concretos.
O ex-general fuzileiro naval, que comandou as tropas americanas na guerra do Iraque de 2003, vinha conseguindo também “enrolar” o presidente e evitar que algumas de suas ideias estapafúrdias se materializassem, como a criação de uma Força Espacial ou de uma cara parada militar.
Ele dizia a amigos que precisava ficar para proteger o Pentágono, com seu efetivo de 2,15 milhões de militares e 732 mil servidores civis. Na quinta-feira, ainda tentou dissuadir Trump da retirada das tropas. Ao fracassar, renunciou.
Em junho, Trump quis anunciar a retirada, mas cedeu aos argumentos de Mattis. Em setembro, o governo foi na direção contrária , e anunciou um maior engajamento, para fazer frente à presença do Irã, um dos principais aliados do regime sírio, ao lado da Rússia.
Os movimentos pendulares de Trump oscilam ao sabor de três objetivos americanos na Síria: conter os extremistas islâmicos; derrubar o regime; e servir de anteparo contra a influência do Irã — principal inimigo de Israel e da Arábia Saudita, aliados dos EUA — e da Rússia.
Hostilizar a Rússia obviamente nunca foi um objetivo de Trump, que tem negócios no país, mas continua sendo o de democratas e republicanos no Congresso e da comunidade de defesa e inteligência.
Mas o presidente tem a sua própria agenda. Na defensiva, conforme se fecha o cerco das investigações sobre seu envolvimento com a Rússia e de pagamentos irregulares para silenciar mulheres que alegam ter tido casos com ele, Trump quis mostrar que cumpre suas promessas de campanha, como trazer de volta para casa os militares. Ainda que contra a vontade de seus comandantes.
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