O diretor britânico, que roda ‘Mary Reilly’ com Júlia Roberts, John Malkovich e Glenn Close, reclama da indisciplina dos americanos e diz que está comprometido com a noção de autor.
LONDRES – O diretor inglês Stephen Frears está filmando em Londres Mary Reilly, com Julia Roberts, John Malkovich e Glenn Close. As tomadas começaram em setembro, mas o filme só deve ficar pronto no fim deste ano. “A história se passa em noites escuras, tempo frio, e portanto não pode ser filmada no verão”, explica o diretor de Minha Adorável Lavaderia e Ligações Perigosas.
Formado em direito em Cambridge, com 53 anos, Frears cruzou o Atlântico no final dos anos 80 e, em plena meia-idade, mudou de universo e de perspectivas. Tornou-se membro do seleto clube de diretores de Hollywood, e montou uma ponte-aérea Londres-Los Angeles. Já se acostumou a comprar jornal na esquina de sua rua em Londres numa semana e bater papo num estúdio com Francis Ford Coppola em Los Angeles na outra.
Ex-funcionário da televisão BBC, Frears era conhecido por três filmes bem homogêneos em sua ênfase na marginalidade e na perversidade sexual e emocional: Minha Adorável Lavanderia, Sammy e Rosie e o Amor Não Tem Sexo. De Ligações Perigosas para cá, fez outro filme em escala hollywoodiana: Herói por Acidente, que, ao contrário do primeiro, foi um fracasso de bilheteria. E dois que se enquadram em sua fase inglesa: Os Imorais, com um orçamento bem mais enxuto e temática coerente com sua carreira, como o próprio título indica, e The Snapper, feito para a BBC e só depois levado para o cinema.
Numa manhã fria do final de inverno em Londres, Frears recebeu o Caderno 2 em sua casa grande e confortável, mas simples e tipicamente inglesa, para esta entrevista exclusiva.
Caderno 2 — O que acontece com um diretor de cinema quando o dinheiro e a estrutura de produção de Hollywood batem à sua porta?
Stephen Frears — Ele fica rico (risos). É a coisa mais importante que acontece com ele. Você ganha um monte de dinheiro com isso. É uma maravilha.
Caderno 2 — Mas como você já era um diretor maduro quando Hollywood entrou na sua vida, nota uma mudança na percepção e na sua relação com o cinema?
Frears — (Pausa) Não, na verdade, não. Quer dizer, eu me faço essa pergunta o tempo todo. Os problemas que eu tenho com Hollywood são justamente porque eu continuo completamente comprometido com a noção de autor, da privacidade do escritor. Hollywood tem um jeito muito indisciplinado de fazer filmes.
Caderno 2 – Indisciplinado?
Frears — É. Você pode fazer o que quer. No meio dessas filmagens, por exemplo, eu poderia decidir ir fazer tomadas na Lua, se quisesse. Você fica diante de possibilidades que nunca lhe tinham sido oferecidas. E acho que é um desafio, assustador e estimulante. Às vezes é bom, às vezes, ruim. É interessante que nos filmes que fiz em Hollywood, quanto mais me prendi aos princípios da BBC foi melhor para mim. Quanto mais você procura contar uma história e fazer o seu trabalho bem feito, melhor.
Caderno 2 — Hollywood sempre nos faz pensar em concessões ao mercado…
Frears — Bem, elas são muito sutis. Nao é o tipo de coisa que a gente imagina. Talvez as coisas se cristalizem antes que se perceba. Não é uma questão de final feliz. Na verdade, os filmes mais baratos que fiz são os que têm final feliz. É muito dificil definir isso. Talvez seja na escolha do elenco… Você certamente começa a fazer filmes para um outro tipo de gente, num mundo diferente. E eu acho que as pessoas julgam os filmes de Hollywood de uma maneira que eu não entendo bem. Tenho feito filmes com uma grande carga emocional, e o público sabe muito mais a respeito deles do que eu mesmo. Se faço filmes a partir da minha inteligência, ou da criatividade de um escritor, eu sei que estamos lidando de igual para igual. O pessoal que faz filmes em Hollywood é muito inteligente. Mas é óbvio que o que você tenta fazer são filmes inteligentes para um grande público.
Caderno 2 — Quanto do seu tempo você passa em Hollywood?
Frears – Eu fiz dois filmes em Los Angeles, e passei muito tempo lá enquanto fazia esses dois filmes. Acho que vou lá umas cinco ou seis vezes por ano. É como ir para a matriz (risos). Sério, é literalmente isso. É só uma pista de avião. É tudo muito diferente, e ao mesmo tempo é igual. Alguns aspectos são completamente diferentes. É como fazer filmes num picadeiro. Ao mesmo tempo, quando você faz o filme, com os atores, é o trabalho normal de diretor.
Caderno 2 — Ligações Perigosas cumpriu o papel de passagem do cinema britânico para o hollywoodiano?
Frears — Ninguém em Hollywood entendeu. Para eles, era um bando de gente com roupas esquisitas. Ninguém entendia o filme. Era assustador. Vinha de um background tão distante que ficamos isolados. Mas o estúdio gostou, e o público também. Quero dizer, o estúdio tinha gostado do projeto e ninguém tentou nos impor um final feliz, dizer “você não pode fazer isso, não pode fazer aquilo, ponha as mulheres desse jeito” — nada disso.
Caderno 2 – O elemento da perversão sexual que estava muito presente nos três filmes anteriores (da fase inglesa) ainda aparecia em Ligações Perigosas.
Frears – Exatamente.
Caderno 2 — Já em Herói por Acidente, você sentiu uma diluição, que aquela perversão já não estava presente?
Frears — Sim. Acho que teria sido um filme melhor com a metade do orçamento. Eu gostava do roteiro, mas acho que as coisas evoluíram de um modo que não com preendo. O filme foi condenado por ser crítico demais em relação à América e leve demais ao mesmo tempo. Você não pára e diz: “Eu vou fazer algo mais leve.” Ocorreu apesar de mim, num nível inconsciente, que eu não podia ver.
Caderno 2 — Em Os Imorais, você se sentiu mais à vontade?
Frears — Sim. Martin Scorcese foi um produtor muito bom.
Caderno 2 — Como Mary Relly vai se enquadrar nessa trajetória? Ele tem algo a ver com os três filmes da fase inglesa?
Frears — Eu tenho feito filmes há muito tempo. E esses três sempre aparecem numa espécie de lista.
Caderno 2 — É que eles ficaram como sua marca registrada.
Frears — Sim, mas veja bem: minha vida é isso aqui, sou um homem burguês. Minha vida não tem nada a ver com aquele mundo. É claro que meu encontro com Hanif Kureishi (autor de Minha Adorável Lavanderia e Sammy e Rosie) foi muito importante. Mas não estou restrito àquela temática.