Os 120 quilômetros que separam Quetta, a capital da província paquistanesa do Baloquistão, da fronteira com o Afeganistão
CHAMAN, Paquistão – Estão pontilhados pelas marcas da guerra. Na saída de Quetta, um complexo de montanhas esconde um enorme conjunto de paióis de munições, da estatal paquistanesa ASD Beleli. Foram construídos dentro das montanhas, com ajuda dos Estados Unidos, para suprir os afegãos na guerra contra os invasores soviéticos (1979-89).
Ao longo da estrada, dezenas de campos de refugiados afegãos se espalham pela paisagem semidesértica, com seus barracos pequenos e baixos, feitos de tijolos cobertos de barro e sem janelas, com tetos de paus, barro e palha.
Uma parte deles está desocupada: muitos afegãos voltaram para seu país depois que o Taleban assumiu o controle de 90% do território, para reencontrar seus parentes e suas casas.
Dezenas de cemitérios também margeiam a estrada. Aí estão enterrados os afegãos que moravam do lado paquistanês e morreram na guerra. Cada túmulo está assinalado por um pequeno monte de pedras e pela bandeira do grupo fundamentalista ao qual cada combatente pertencia.
A meio caminho de Chaman, uma bandeira vermelha, verde e branca num posto de controle— o primeiro de uma série — marca a entrada no território tribal autônomo dos achakzaís, uma das dez tribos da etnia pashto (majoritária no Afeganistão e no Paquistão) que vivem ao longo da fronteira entre os dois países. Como prova de sua autonomia, os vilarejos vendem irrestritamente sua produção de haxixe ópio, rigorosamente proibidos no Paquistão.
A estrada serpenteia por um desfiladeiro entre as montanhas. Nessa região, denominada Kojak, os achakzaís, como as outras tribos pashtos noutros pontos da fronteira, impediram a entrada dos colonizadores ingleses no Afeganistão, no século 19. No topo das montanhas de Kojak, ainda estão as pequenas fortificações de pedras e tijolos, das quais os achakzaís disparavam contra os soldados ingleses em suas desastrosas incursões.
Chaman, cidade fronteiriça de 300 mil habitantes de maioria pashto e afegã, é um movimentado bazar livre de impostos, uma seqüência interminável de pequenas lojas que vendem produtos eletrônicos de marcas desconhecidas, ao lado de utilidades domésticas, roupas e brinquedos. O esgoto a céu aberto exala um cheiro perturbador, mas os moradores, acostumados, conversam calmamente no início da noite, sentados na frente dos bares, tomando refrigerantes ou chá.
Muitos deles vão e vêm através da fronteira. Todos se consideram não paquistaneses ou afegãos — uma divisão artificial e inócua para esse território autônomo — mas pashtos e achakzaís. “Não queremos mais o Taleban, estamos cansados, queremos um bom governo e democracia”, diz Salahuddin, 31 anos, dono de uma loja de eletrônicos em Chaman. Ele reconhece que a vida no Afeganistão melhorou depois que o Taleban assumiu o controle. “Antes, cada pedaço de terra era controlado por um grupo, em guerra com os demais. O Taleban recolheu as armas e trouxe paz. Os refugiados voltaram parareconstruir suas casas.” É isso que as pessoas, querem, raciocina Salahuddin: paz e ordem.
Talvez por isso seja a hora de o Taleban dar lugar a outro governo. “Somos muçulmanos e não podemos lutar com os religiosos, por isso os aceitamos por muito tempo”, diz o comerciante. “Mas agora estamos pagando impostos ao Taleban e ele não nos dá em troca desenvolvimento, estradas e infra-estrutura. E estão governando pela força. Nesta cidade, como no resto do Paquistão, há eleições. Lá, não.” “Talvez haja um governo melhor se o rei Zaher Shah (destronado em 1973) vier e unir todos os grupos”, espera Ida Mohammad, que mora em Mazar-e-Sharif, cidade importante do norte do Afeganistão. “Ninguém pode governar pela força nem impor nenhum governo sobre os afegãos. É preciso sentar e negociar o futuro.” Mohammad também não vê sentido na imposição estrita das regras do Islã pelo Taliban. “Há muito tempo seguimos as regras islâmicas. Para que impor o Islã pela força?”
“Quando o Taleban lançou o seu movimento, os moradores daqui o apoiaram”, lembra Abdul Khaliq. “Eles não impuseram nada pela força. Usaram do convencimento. É por isso que agora controlam 90% do país.” Mohammad, que importa frutas secas do Afeganistão para o Paquistão, veio de lá há duas semanas e continua indo e voltando normalmente.
Garante que não tem medo da guerra: “É nosso país. Por que teria medo?
Continuaremos trabalhando, mesmo se houver guerra.” Mas a perspectiva assusta muitos afegãos. Ismail Shamsollah, de 24 anos, chegou na véspera. Ele deixou a fazenda da família em Elmand, perto de Kandahar, quartel-general do Taleban, com medo de possíveis ataques. “Milhares de combatentes já tomaram posição para a guerra santa e muitos estão chegando do Paquistão”, conta Shamsollah, ostentando um olho roxo. Ele levou um murro do motorista que o trouxe a Chaman, porque só lhe comunicou que não tinha dinheiro para pagar pela viagem depois de cruzarem a fronteira. Tentará, agora, ir para Quetta, onde diz ter parentes.
Mohammad tem uma visão conspirativa da situação: acha que “o Taleban está sendo usado pelo serviço secreto paquistanês”. O secretário-geral da Federação de Futebol do Balochistão, que teve de cancelar, por causa da crise, um torneio que estava organizando entre times iranianos, paquistaneses e afegãos, avalia que o Taleban cometeu um erro ao confiar no governo paquistanês. “O Paquistão não é confiável. Qualquer país, como os EUA, o força a lutar contra o Afeganistão”, diz Said Ehmat, o dirigente futebolista. “Nós, pashtos, vivemos dos dois lados da fronteira. Se eles forem atacados, sofreremos também.” Abdul Khaliq intervém: “Os americanos gastam muito dinheiro com mísseis. Se investissem esse dinheiro no bem-estar e na infra-estrutura do Afeganistão, resolveriam o problema”, diz ele, sob a aprovação geral.
Nesse ponto, Malik Seyed Nurhan, de 77 anos, um dos líderes da comunidade, junta-se à roda. Quando vê do que se trata, sai para ir buscar fotos em sua casa, que o mostram à frente de um grupo de 16 jovens que recrutou em Chaman para lutar na guerra contra os russos, há 20 anos. “Se os americanos promoverem ataques aéreos, não vão reduzir o terrorismo, mas aumentar”, prevê Nurhan. “Se matarem pessoas inocentes, todos aqui vão atacar os EUA.”
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