Líderes espirituais têm visões distintas

As varandas que dão para o pátio interno da casa do empresário mais rico de Chaman, Mohammad Azim

O maulana Enamul Hassan, na casa de um empresário, em Chaman

CHAMAN, Paquistão – Estão abarrotadas de sacas de açúcar, que saíram da Índia, passaram pelos Emirados Árabes Unidos, vieram para a fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão e aguardam o ápice do conflito para atingirem melhor preço e serem vendidas aos afegãos. O trajeto não faz sentido geográfico, mas geopolítico: a Índia é inimiga do Paquistão e do Taleban.

Às 21 horas de domingo, o maulana (líder espiritual) Enamul Hassan aguarda o jantar na casa de Azim, sentado no tapete verde da sala comprida, revestida de elegantes mosaicos de madeira clara. O que ele acha que vai acontecer com o Taleban? “Temos muitas tribos e grupos étnicos no Afeganistão, com diferentes culturas e povos. Sem o apoio de todos, é difícil para o Taleban (da etnia majoritária pashto) governar o Afeganistão”, opina o moderado religioso. “É melhor criar um parlamento em que todos estejam representados.

Dessa forma, um governo seria bem-sucedido.” O maulana não acredita nos métodos do Taleban. “O profeta Maomé atraiu os fiéis ao Islã com seu exemplo de bom caráter, não pela força. Somente pelo convencimento se pode ter êxito.”

Nisso, chega o maulana Jamaluddin Afeghani, o principal líder do movimento taleban na tribo dos achakzaís. Afeghani, que teve três irmãos mortos na guerra contra outras facções afegãs para impor o domínio do Taleban, entre 1994 e 1996, e que tem acesso direto ao comandante supremo do regime, Mohammad Omar, obviamente destoa de seu colega.

Ele recorda que, quando os taleban assumiram o poder, chamaram todos os mulás e disseram: “Vocês são sacerdotes e nós somos apenas estudantes. Vocês farão as leis, porque nós podemos cometer erros. Vocês nos dirão como governar.” Ao que os mulás responderam, segundo Afeghani: “Seu governo é o que o Profeta projetou 1.400 anos atrás. Vocês estão no caminho certo.”

Afeghani não tem dúvidas: todos os aspectos da vida de um país muçulmano têm de ser regido pelo Corão e pela Sharia (lei islâmica).

Por isso, na visão dos taleban, o Afeganistão tem o único regime verdadeiramente islâmico do mundo. Nem o Irã atende plenamente aos seus estritos requisitos. Muito menos o Paquistão. “Todos os governos dos países muçulmanos estão dominados pela América”, analisa Afeghani. “Mas seus povos estão com o Taleban.” Para um governo ser islâmico, tem de obrigar a população a observar costumes de 14 séculos atrás, como a barba longa nos homens e as vestimentas que cobrem até o rosto das mulheres? “É preciso tentar convencer a população a seguir todos esses preceitos”, responde Afeghani. “Se não aceitar, tem de ser forçada a seguir. São as nossas regras.”

O maulana Hassan ouve silenciosamente os argumentos do colega. Não deveria ser pelo convencimento em vez da força? “Ser muçulmano não é usar barba ou vestir véu”, sorri pacientemente. “Ser muçulmano é seguir as leis e os princípios morais.” Quais? “O principal fundamento do Islã é a paz”, intervém Azim, o dono da casa, que leva o título de haji, conferido a quem já peregrinou à terra sagrada de Meca.

E como o conceito de jihad (guerra santa) se encaixa nesse princípio? “O muçulmano deve fazer a jihad contra qualquer pessoa que vier perturbar a paz”, responde Afeghani. O termo “guerra santa” remete os ocidentais às Cruzadas. Não é uma guerra expansionista, para impor o Islã a outros povos?

Os dois maulanas e o haji garantem que não. O profeta Maomé e seus seguidores espalharam o Islã pela persuasão, não pela guerra, afirmam. “O Taleban faz jihad contra a Aliança do Norte, que é composta de muçulmanos”, exemplifica Afeghani. “Isso prova que a jihad não é contra as outras religiões.” A jihad é um dever moral do muçulmano quando sua terra ou sua religião estão ameaçadas e seu alvo não podem ser pessoas inocentes, concordam todos. Daí para diante, cada um tem interpretado a sua maneira quando sua terra e sua religião estão sob ameaça. E o que são pessoas inocentes. 

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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