No seu último discurso para pedir votos aos delegados conservadores na disputa pela liderança do partido, dia 17, o agora primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, ergueu um arenque com a mão direita e um saco de gelo com a esquerda. Em tom dramático, Johnson denunciou um capricho dos “burocratas de Bruxelas” que elevou os custos de produção do peixe “maciçamente”, com a obrigatoriedade de embalá-los junto com sacos de gelo.
“Sem sentido, caro, prejudicial ao meio ambiente, à saúde e à segurança”, criticou, explicando que era por essas e outras que ele livraria o Reino Unido do jugo da União Europeia (UE). A plateia vibrou. Johnson sorriu. Era mais uma mentira, de sua imensa coleção, que colava. É uma lei britânica, não europeia, que obriga o uso do tal saco de gelo, para garantir que o peixe não estrague durante o transporte.
Desde muito antes de se tornar político, Johnson vem construindo sua carreira sobre a base de mentiras que as pessoas gostam de ouvir. Ele começou cedo. Ainda como estagiário do jornal The Times, foi demitido depois de inventar uma frase do rei Eduardo 2.º, citando como fonte seu próprio padrinho, o historiador Colin Lucas.
Conseguiu então emprego no jornal conservador Daily Telegraph, que acolheu bem suas mentiras, enviando-o como correspondente em Bruxelas. O Telegraph não gostava da UE, e ali as invenções de Johnson caíram no gosto do jornal e de seus leitores.
Entre elas: a UE queria padronizar os caixões, o cheiro do esterco e o tamanho dos preservativos; os salgadinhos com sabor de camarão e as salsichas inglesas seriam proibidos; os pescadores, obrigados a usar tocas; documentos de identidade europeus se tornariam obrigatórios; cidadãos de outros países poderiam se eleger para o Parlamento britânico. E assim por diante.
Em entrevista à BBC, em 2005, já como deputado, ele lembrou esse período com nostalgia: “Tudo o que eu escrevia de Bruxelas era como jogar pedras por cima do muro do jardim. Eu ouvia o som impressionante do vidro da estufa quebrando na Inglaterra. Isso realmente me dava, eu suponho, uma sensação de poder muito estranha”.
O poder deixou de ser uma sensação para se tornar uma realidade, à medida que ele foi abocanhando espaços na direita de seu partido. Depois de ter sido um popular prefeito de Londres, Johnson foi um dos líderes da campanha em favor do Brexit, em 2016. Na oportunidade, também mentiu bastante. A ponto de a Justiça ter aberto um processo contra ele, por ter afirmado falsamente que o Reino Unido enviava 350 milhões de libras por semana (US$ 433 milhões) para a UE.
Essa pessoa é agora o chefe de governo do país. E promete renegociar o acordo de saída da UE nos três meses que restam até o fim de outubro. Johnson, assim como a maior parte dos conservadores e os unionistas (protestantes da Irlanda do Norte), rejeita a manutenção da fronteira aberta com a República da Irlanda depois da saída. Essa é, no entanto, a condição da UE para que o Reino Unido continue no Mercado Comum Europeu até a negociação de um novo acordo comercial entre o país e o bloco.
Uma saída sem acordo levaria a um encolhimento de 5% na economia britânica no período de um ano. O cálculo não é de um instituto de esquerda, mas do Banco da Inglaterra (o banco central britânico). O país se reacomodaria, fazendo novos acordos comerciais. Mesmo assim, em 2035, sua economia seria 8% menor do que se tivesse continuado na UE, estima o Ministério das Finanças britânico.
Johnson diz que não deseja uma saída sem acordo, mas que não a descarta, se a UE não ceder. O Brexit já derrubou dois primeiros-ministros. Não será surpresa se derrubar um terceiro. Entretanto, Johnson é diferente de seus antecessores David Cameron e Theresa May. Eles são políticos convencionais, no sentido britânico do termo: respeitam limites e se preocupam com sua biografia.
Johnson está na categoria dos aventureiros, que não têm nada a perder, e que estabelecem um vínculo com os cidadãos comuns exatamente por essa identidade de despojamento, informalidade e despreocupação com a própria reputação. É nesse sentido que ele lembra figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro, embora haja outras características que os diferenciem.
Como não têm compromisso com a própria palavra, com os fatos ou com o encadeamento lógico de causas e consequências, eles são profundamente imprevisíveis. E fazem dessa imprevisibilidade uma arma. Encaram a vida como um jogo de paintball, em que procuram surpreender o adversário, e em que tudo é tão reversível como uma bala de tinta lavável. Pena que o mundo real não seja assim.
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