Uma crise peruana

A dissolução do Parlamento pelo presidente Martín Vizcarra não foi um ataque à democracia, como pareceu, para quem não conhece a legislação e o sistema político peruanos. Ao contrário. Se novas eleições ocorrerem, como está previsto, em janeiro, a iniciativa poderá proteger as investigações de corrupção e atender à vontade da grande maioria.

Nos sistemas presidencialistas, o presidente e o Congresso são eleitos periodicamente; nos parlamentaristas, novas eleições podem ser convocadas pelo chefe de Estado (presidente ou monarca) quando conclui que não há mais acordo mínimo para aprovar o que é necessário para seguir governando; e há os sistemas mistos, como na França e no Peru.

Esses sistemas são mistos porque neles o papel do chefe de Estado não é apenas de intervir pontualmente, por exemplo convocando eleições ou pedindo para um líder partidário formar governo, como acontece no parlamentarismo. São presidentes que se elegem pelo voto direto, com base em plataformas de governo, e que nomeiam o primeiro-ministro e o restante do gabinete.

Assim, os presidentes da França e do Peru podem dissolver o Parlamento e convocar eleições. Existe, claro, um ritual para isso. No caso peruano, é preciso que o Parlamento negue duas vezes um voto de confiança ao governo. Na primeira vez, o gabinete é dissolvido, como ocorreu em setembro de 2017. A segunda vez desencadeia a dissolução do Parlamento e convocação de eleições.

Foi por causa dessa equação que a maioria de oposição no Parlamento aprovou no ano passado, a contragosto, quatro reformas políticas e do Judiciário, incluindo uma lei que impede os deputados (o Parlamento é unicameral, não tem Senado) de se reeleger para um segundo mandato consecutivo. As reformas passaram por referendo popular em dezembro.

Isso foi cortar na carne, exatamente para evitar a convocação de eleições. Os deputados têm imensos índices de rejeição popular, na casa dos 90%, enquanto a aprovação do presidente gira em torno de 50%, e 70% querem a antecipação das eleições.

Peruano segura cartaz agradecendo o presidente Martín Vizcarra pela dissolução do Parlamento Foto: AP Photo/Martin Mejia

Em abril, o governo voltou à carga e propôs mais 12 reformas. O Parlamento resistiu. Ele reduziu a seis. Entre elas, a introdução de um comitê, criado pela Corte Suprema, para decidir se um parlamentar perde a imunidade na investigação de um crime.

Elas também incluíam mudanças nas regras de financiamento de campanha, para evitar esquemas de propina como o da Odebrecht, que levou a ordens de prisão contra quatro presidentes (um dos quais se suicidou) e a líder da oposição. 

Vizcarra também tentou uma reforma ampla do Judiciário e do Ministério Público, que lhes daria mais independência e poria fim ao esquema atual, em que os deputados nomeiam os juízes da Corte Constitucional. Tudo isso foi negado.

O presidente apresentou moção de confiança. Antes de votá-la, os deputados iniciaram a nomeação de seis membros da Corte Constitucional (de um total de sete), cujos mandatos de cinco anos expiraram em junho. 

Quando nomearam o primeiro, Vizcarra interpretou a iniciativa como voto de desconfiança, e dissolveu o Parlamento, automaticamente desencadeando a convocação de eleições para janeiro. Os deputados então deram o voto de confiança no governo, na tentativa de se blindar contra a dissolução.

“A questão fundamental é a estratégia do Congresso de evitar as reformas”, me explicou o analista político peruano Diego Moya-Ocampos, da consultoria IHS Markit Country Risk.

Há uma diferença entre o que Vizcarra e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, fizeram. Johnson não tinha maioria para seguir adiante com sua ameaça de deixar a União Europeia sem acordo, e por isso suspendeu o Parlamento. Também não tinha maioria suficiente para convocar eleições, como prevê a lei no Reino Unido.

No Peru, a lei permite que o presidente dissolva o Parlamento e convoque eleições. A objeção de que não houve voto de desconfiança é uma tecnicalidade: o Parlamento apenas se desviou desse voto, para evitar a dissolução, mas procedeu na prática como se tivesse dado o voto, ao nomear um membro da Corte.

Sendo uma tecnicalidade, naturalmente os juristas peruanos divergem na interpretação do tema. Para efeito desta análise, e para fazer jus ao espírito da lei, vale também olhar o contexto político. O fato é que o Peru que elegeu o atual Parlamento, em 2016, não existe mais. Assim como não existe mais o Brasil pré-Lava Jato. A diferença é que o Brasil já teve suas eleições. O Peru, não.

Publicado no Estadão. Copyright: O Estado de S. Paulo. Todos os direitos reservados.

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