A Rodovia do Grande Entroncamento, a estrada pavimentada que liga a cidade paquistanesa de Peshawar a Cabul
JAMRUD, Território Tribal Autônomo – Reservou para si um papel de protagonista na História. Foi por aqui que passaram os estudantes — “taliban”, no idioma pashto —, em comboios de ônibus e caminhões, para tomarem de assalto a capital afegã, em 1996.
Partiram das madrassas, as escolas religiosas que ensinam a leitura literal do Corão — e se espalham por toda a Província da Fronteira do Noroeste do Paquistão, de maioria patan, a etnia dominante no Afeganistão.
Se as tropas americanas quiserem repetir o feito dos combatentes fundamentalistas, para avançar rumo ao coração do Afeganistão, terão de passar por aqui também. No caminho, vão encontrar centenas de milhares de homens para quem nada dá mais sabor à vida do que a jihad — a guerra santa.
Enquanto os americanos preparam sua parafernália de guerra, os afegãos estão prontos, aguardando com seus fuzis, metralhadoras e morteiros no Território Tribal Autônomo. Uma área historicamente governada pelos chefes das dez grandes tribos afegãs, que, segundo eles mesmos, abriga 8 milhões de pessoas.
Na rodovia que corta o território autônomo, partindo da capital da província paquistanesa, destinada a ser uma das principais bases americanas, cada vilarejo se converterá em foco de resistência e cada casa em reduto de franco-atiradores, transformando o terreno num inferno para os soldados americanos, prometem os membros das tribos afegãs.
Nesse aguerrido reduto afegão, os homens esfregam as mãos de contentamento.
“Vamos achar bom se os americanos vierem, porque poderemos fazer a jihad com eles. Gostamos de lutar”, diz Nurheder Afridi, de 75 anos. “Quando lutamos por nosso país, nos tornamos combatentes da liberdade ou vamos para o paraíso”, explica Ghulan Rahman, de 35, cofiando a barba ruiva.
“Se os americanos acham que vão tomar fácil nossa terra, estão muito enganados”, diz Taher Afridi. “Nós já expulsamos daqui duas potências, a Grã-Bretanha e a União Soviética, e vamos expulsar mais uma”, completa Nurheder, um haji (título de prestígio dado a quem já peregrinou a Meca).
Durante 52 anos, desde o tempo do domínio britânico, ele trabalhou como motorista da rota Peshawar-Cabul — seis horas e meia de viagem. “Sabemos usar todos os tipos de armas. Só não temos tanques e aviões.”
Alguns quilômetros a leste, nos campos de refugiados afegãos da periferia de Peshawar, a disposição é ainda mais drástica. “Vou fazer um ataque suicida.
Meu sonho é explodir um tanque americano”, diz Omar Khan, de 27 anos, causando sensação entre os companheiros numa tenda na entrada de um campo de refugiados de Jalalabad, primeira grande cidade afegã cortada pela rodovia.
Munição — Os moradores do Território Tribal Autônomo dizem que têm todo tipo de armas leves, capturadas durante a guerra com os soviéticos (1979-89), e munição para um ano de luta. Já os refugiados no lado paquistanês da fronteira dizem que não podem ter armas no território do outro país, mas irão buscá-las no Afeganistão quando chegar a hora. E estimam que o regime Taleban tenha estoque de munição para dez anos de luta — sua referência de duração de uma guerra com uma superpotência.
“Nós temos mísseis Scud no Afeganistão e vamos lançá-los contra as bases paquistanesas que forem usadas pelos aviões americanos”, diz o refugiado Zarb Adshah, de 27 anos. Os afegãos desprezam o presidente paquistanês, o general Pervez Musharraf, pelo que consideram a atitude covarde de apoiar os Estados Unidos. “Não esperávamos que um soldado fosse agir assim”, diz Ziaurehman Afridi. Entre os afridis e as outras tribos do território autônomo, vigiado por milicianos, vigora a tradição segundo a qual desde meninos os afegãos aprendem a manejar todo tipo de armas. Saber lutar para se defender é um atributo natural.
Os afegãos se declaram contra o terrorismo e acreditam na inocência de Osama bin Laden, pelo menos até que os americanos lhes provem sua culpa. “O Afeganistão é muito longe dos Estados Unidos. Osama não pode ter feito isso”, sentencia o haji Nurheder. “Ele é muçulmano como nós e, se o expulsarem de lá, podemos abrigá-lo aqui.” O milionário saudita, financiado pelos americanos durante a guerra entre afegãos e russos, é visto apenas como um pretexto. “A América estava esperando uma desculpa para tomar o Afeganistão”, analisa Zarb Adshah.
“Somos solidários com as vítimas dos ataques aos EUA. Para nós, mais uma vez, é uma questão de autodefesa, como foi quando os soviéticos nos invadiram”, constata o refugiado de Jalalabad. Uns acham que foram os próprios americanos que lançaram os aviões contra o World Trade Center e o Pentágono; outros, que foi obra dos israelenses. Mas a origem de todos os seus problemas, dizem os afegãos, está nos Estados Unidos e na cooptação dos paquistaneses.
Iqbal Afridi, de 45 anos, conta que, nos seus tempos de estudante de economia na Universidade de Cabul, nos anos 70, conheceu muitos russos, e diz que eles estavam lá para dar assistência técnica ao Afeganistão e ajudar a desenvolver o país. “O Afeganistão era um país tranqüilo. Foram a CIA e os militares paquistaneses que insuflaram os afegãos contra os russos, dizendo que eles eram ateus e queriam tomar o Afeganistão.” O governo afegão apoiava a Índia, país não-alinhado e inimigo do Paquistão.
Os afegãos do território autônomo culpam também os governos dos EUA e do Paquistão por suas dificuldades materiais. Segundo Nurheder, até três anos atrás a principal fonte de renda dos afridis eram as plantações de papoula — matéria-prima da heroína — e o haxixe, cuja produção era vendida a intermediários dos americanos. Então veio o governo dos EUA e pediu que eles acabassem com essas plantações, oferecendo-lhes indenização. “O dinheiro nunca apareceu. Ficou com os funcionários paquistaneses.”
Revolução — Os afegãos acreditam que, se os Estados Unidos pararem de ajudar seus inimigos — entre eles, a Aliança do Norte, que combate o Taleban —, o regime fundamentalista, que hoje controla 90% do território, poderá finalmente governar todo o país, e os problemas estarão resolvidos. Aí, vão querer exportar a revolução islâmica?
“Vamos fazer com que os outros países fiquem iguais ao Afeganistão, a começar pelo Paquistão”, admite Taher. “Não à força, e sim pela persuasão.”
À crença na inocência de Bin Laden e na culpa dos Estados Unidos e dos paquistaneses junta-se o combustível religioso. “Levantem-se os muçulmanos que estão dormindo e ajudem o irmão Osama”, dizia o sacerdote da Mesquita Sadar, em Peshawar, na pregação da tarde de sexta-feira. “Se vocês fizerem isso, seu futuro será brilhante. Se forem para o outro lado, será obscuro.”
Nas madrassas, nas mesquitas e na memória dos afegãos, fermenta o ódio aos americanos. Para muitos afegãos do território autônomo e dos campos de refugiados, o momento não inspira medo, mas a doce esperança de que é chegada a hora do acerto de contas.
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