Analista sul-africana diz que início de governo do novo presidente mostra acertos nas áreas econômica e racial
O novo presidente Jacob Zuma “liberou o gene do populismo” na política sul-africana. Mas manteve a bem-sucedida política econômica seguida há 15 anos e tem promovido a integração racial, nomeando integrantes das minorias branca (10% da população) e hindu (2%) para postos-chave do governo. O balanço dos primeiros quatro meses do governo é de Ann Bernstein, diretora do Centre for Development and Enterprise, de Johannesburgo, dedicado ao estudo de políticas públicas.
O populismo de Zuma é produto de seu perfil pessoal. Pouco instruído – ele estudou como autodidata na lendária prisão de Rodden Island e no exílio -, Zuma fala e se comporta como o negro comum sul-africano, diz Ann. Ele tem oficialmente três mulheres e incontáveis casos extramaritais. Um vídeo feito antes da eleição mostra-o com roupas tradicionais, cantando e dançando o agressivo hino zulu “Traga-me minha metralhadora”, com a arma em punho.
“Ele é muito orgulhoso de ser zulu”, observou Ann, em entrevista ao Estado depois de dar uma palestra na quarta-feira no Instituto FHC, em São Paulo. “Está muito à vontade sendo o que é.” Ela não considera que isso seja necessariamente ruim: “Precisamos ver a realidade do país. É saudável.” A capacidade de comunicar-se com o povo explica a vitória de Zuma sobre o ex-presidente Thabo Mbeki na disputa pela liderança do Congresso Nacional Africano (CNA), o partido dominante no país.
Zuma era vice-presidente no governo de Mbeki, e foi destituído em 2005 sob acusação de corrupção. Três anos depois, desafiou a liderança de Mbeki no CNA e tornou-se presidente do partido – passo decisivo para presidir o país. O CNA, fundado por Nelson Mandela, domina a política sul-africana desde o fim do apartheid e das primeiras eleições multirraciais, em 1994. O presidente é eleito indiretamente, e o CNA – que obteve 66% dos votos em maio – tem maioria absoluta no Parlamento. Mbeki presidia o país desde 1999, estava no fim de seu segundo mandato e postulava um terceiro.
Em abril, depois de sua eleição para a presidência do CNA e um mês antes da eleição presidencial, a Procuradoria-Geral da República retirou as acusações de corrupção contra Zuma, o que “não é bom para a independência do Judiciário”, reconhece Ann.
Zuma é o primeiro presidente da etnia zulu, a maior do país, com 23,8% da população. Tanto Mandela quanto Mbeki são da etnia cossa, a segunda maior, com 17,6%. Ele derrotou o líder nacionalista zulu Magosuthu Buthelezi em seu reduto, a província de KwaZulu-Natal. Ann afirma que, até aqui, a ascensão de Zuma não tem despertado temores nos cossas. Ao contrário, diz ela, “Zuma começou a reparar parte do dano racial”, em contraste com Mbeki, que frequentemente lançava mão da “carta racial” contra os que discordavam dele. Diante das críticas por causa das altas taxas de criminalidade, por exemplo, o então presidente alegou que o crime era “problema de branco”.
Segundo a analista, Zuma formou uma equipe econômica “excelente”, e tem nomeado técnicos brancos e hindus. “Precisamos dos talentos deles”, diz Ann, ela mesma da minoria branca. Ainda pesa, no entanto, a forte tradição do CNA de nomear preferencialmente negros e militantes do partido. “O clientelismo impera no CNA”, critica a analista. Ela explica que a eleição não é distrital, e os políticos não prestam contas aos eleitores de suas bases, mas aos chefes do partido.
O grupo de Mbeki, incluindo ministros de seu governo, deixou o CNA e fundou o Congresso do Povo, que obteve 7% dos votos na eleição de maio e hoje faz oposição ao governo de Zuma. “É o surgimento de uma oposição formal”, celebra Ann. “É fantástico para a África do Sul ter uma outra escolha e caminhar para uma verdadeira política partidária.” Até aqui, diz a analista, a maioria negra (79%) votava de modo automático no CNA, independentemente de todas as queixas que tinha em relação ao partido.
Como arquétipo do negro sul-africano, Zuma pode não ser um bom modelo no que se refere a um dos grandes problemas do país: a epidemia de aids. Cerca de 11% dos 49 milhões de sul-africanos têm o HIV. Em 2006, durante julgamento em que era acusado de estuprar uma mulher de 31 anos mesmo sabendo que ela era portadora do vírus da aids, Zuma explicou que não havia com que se preocupar porque “tomou uma ducha” depois do ato sexual.
Depois de Mbeki ter passado metade de seu governo de dez anos negando a gravidade da epidemia de aids no seu país, não é exatamente inspirador. “A batalha contra a aids requer engajamento sem ambiguidades de todos os líderes sul-africanos”, diagnostica Ann. Desde que Mbeki reconheceu, na metade da década, a necessidade de fazer algo, o governo tem feito campanhas, e conduz o maior programa de distribuição de retrovirais do mundo.
O maior problema do governo Zuma é o desemprego. Graças ao crescimento econômico, que entre 2004 e 2007 teve média de 5%, o índice oficial caiu nos últimos dez anos de 28% para 23,5%, mas continua alto. Esse índice exclui a vasta mão-de-obra subempregada, e Ann estima que o déficit de empregos formais esteja entre 36% e 38%. Entre os jovens de 18 a 30 anos, diz ela, o índice chega a 60%. Ao mesmo tempo em que faltam empregos para a grande massa de negros sem capacitação profissional, falta também mão-de-obra especializada e de nível superior, como médicos e engenheiros. “Praticamente não há desempregados brancos e hindus”, constata a analista. “O desemprego é um fenômeno negro.”
Para gerar mais empregos formais, diz Ann, seria necessário mudar a legislação trabalhista – inspirada na alemã -, que garante muitos direitos para quem tem carteira assinada mas encarece muito a contratação. Isso implicaria enfrentar os sindicatos, que têm forte influência sobre o CNA.
A construção de estádios, rodovias, ferrovias e outras obras de infra-estrutura – incluindo corredores de ônibus inspirados em Curitiba -, para a Copa do Mundo do ano que vem, tem gerado empregos de baixa qualificação, e treinado muitos trabalhadores. A dúvida de Ann: “O que acontecerá com eles, depois da Copa?”
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