RAFAH, Faixa de Gaza – À primeira vista, as barracas de lona na areia ao longo da fronteira entre a Faixa de Gaza e o Egito parecem as estufas usadas pelos agricultores nesse solo árido. Cada uma delas, no entanto, encobre um poço, com uma roldana, um cabo de aço com um gancho que sustenta um tonel, uma bomba d’água elétrica movida por gerador e um trilho pelo qual um pequeno vagão – como aqueles usados nas minas – transporta para o depósito ao lado os produtos contrabandeados do Egito pelos mais de mil túneis subterrâneos.
Cada túnel tem a própria entrada e saída e é especializado em um produto. O repórter do Estado desceu, sentado em uma corda atada ao gancho do cabo de aço, formando um balanço, um poço de 29 metros dedicado a trazer brita do Egito. Materiais de construção fazem parte da lista de produtos vetados pelo bloqueio israelense da Faixa de Gaza. A brita vem em sacos de nylon, numa esteira de lona movida por bombas d’água ao longo do túnel de 1.160 metros. O comprimento mínimo dos túneis é de 700 metros. Quando chegam debaixo do poço, os sacos são abertos e a brita, despejada nos tonéis, que são colocados no gancho do cabo de aço e erguidos até a superfície. Cada tonel carrega 200 kg de brita.
Talal Harb, um dos donos do túnel, conta que ele e seus nove sócios – oito na Faixa de Gaza e um no Egito – investiram US$ 170 mil na sua construção, que levou nove meses, quatro anos atrás. O poço e o túnel são revestidos de cimento. Operam 24 horas por dia e empregam 22 trabalhadores. São comuns desabamentos nesses túneis, além dos ataques aéreos israelenses. Harb conta que um funcionário morreu num bombardeio de um avião F-16, há um ano.
Ele diz que traz em média 100 toneladas de brita do Egito por dia e vende 90% do produto para o grupo fundamentalista Hamas, que governa a Faixa de Gaza e reconstrói casas atingidas pelos bombardeios israelenses, além de infra-estrutura. Harb e seus sócios compram a tonelada de brita no Egito por 50 shekels (US$ 14,28) e vendem por 110 shekels (US$ 31,43) na Faixa de Gaza; pagam 40 shekels (US$ 11,43) aos funcionários e dividem os 20 shekels (US$ 5,71) com seu sócio do Egito – 10 para cada.
Enquanto Harb conversava com o repórter, um funcionário do Ministério do Interior passou, numa motocicleta, para anotar o fluxo de produtos numa planilha. Todos os túneis têm de ter autorização do Hamas para funcionar. De barba, calça cargo preta e colete bege – vestimenta padrão do Hamas -, o fiscal sacou uma câmera de vídeo portátil e gravou imagens do repórter. Acionou agentes de segurança do Hamas e escoltou o repórter até a saída de Rafah, 40 km ao sul da cidade de Gaza. Eles disseram que salafistas (radicais islâmicos) tentaram sequestrar um jornalista estrangeiro naquela manhã de quinta, mas o Hamas os prendeu.
CARROS ZERO
Abdullah Jibur abriu há sete meses em Rafah sua concessionária de carros zero trazidos do Egito. Na quinta-feira, ele tinha na porta uma Mercedes-Benz, um jipe Hyundai Tucson, um sedã Hyundai Sonata, uma minivan Kia e quatro sedãs Kia Cerato. Jibur contou que compra o Cerato por US$ 21 mil, paga US$ 6 mil ao dono do túnel e vende por US$ 28 mil. No caso de jipes, o dono do túnel cobra US$ 9 mil.
O comprador tem de ir a um escritório do Hamas em Rafah e pagar US$ 1 mil de imposto. Antes, os carros vinham em partes e eram remontados na Faixa de Gaza. Com a construção de três túneis grandes para carros, há cerca de dez meses, eles passaram a vir inteiros. Israel não permite a importação de carros zero; os mais novos têm de ser de 2008. Um Cerato 2008 de Israel tem o mesmo preço final do zero vindo do Egito: US$ 28 mil. “Se não tivéssemos que pagar pelo túnel, seria mais barato”, lamenta Jibur.
Os túneis revitalizaram a economia da Faixa de Gaza, deprimida pelo bloqueio comercial imposto por Israel, que alega razões de segurança. O território, onde mora 1,5 milhão de pessoas, tem toda a costa oeste de frente para o Mar Mediterrâneo, mas Israel não permite que construa um porto e tenha comércio com outros países. O mesmo se aplica à fronteira com o Egito, por onde só podem passar pessoas desde 1967, quando Israel ocupou a Faixa de Gaza.
Mohamed Migdad, professor de economia da Universidade Islâmica de Gaza, diz que os empresários do território são competitivos em uma série de produtos, como móveis, ferramentas e laranja, embora Israel tenha “imposto” o cultivo de flores e laranja, que são formas de “exportar água”, altamente intensivas em irrigação. “Precisamos de fronteiras livres, porto e aeroporto. Com isso, não precisamos de ajuda externa.”
Graças aos túneis, a economia da Faixa de Gaza cresceu 15% no ano passado, enquanto na Cisjordânia o crescimento foi de 9%. Mas os palestinos sabem que não podem viver de contrabando para o resto da vida. “Eu não gosto dos túneis”, disse Harb, um ex-funcionário municipal de 33 anos, cuja irmã de 42 anos e sobrinha de 18 foram mortas por um míssil disparado por um avião israelense não-tripulado no dia 18, quando ela queimava restos de madeira e papel no quintal, e a fumaça aparentemente foi confundida com foguetes. “Abram a fronteira com o Egito para o comércio, e eu serei o primeiro a fechar esse túnel.”
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