Graças à riqueza do petróleo, a cidade que tem 40% da área ocupada pela água atrai 600 mil imigrantes a cada ano, vindos de toda a África
LAGOS – Na tarde chuvosa de domingo, um homem com água até o joelho tenta arrastar uma enorme tora de madeira na Lagoa de Lagos, destino de esgoto e lixo da megalópole nigeriana. Ao seu redor, palafitas, canoas e lixões exalando fumaça compõem o cenário do Okobaba Timber Center.
Entreposto a céu aberto para onde convergem as toras do interior do país, o Timber Center domina a vista das congestionadas pontes que ligam continente e ilhas. Em seu esforço quase sobre-humano – e aparentemente inútil -, o homem pequeno no grande cenário da lagoa encarna a luta pela sobrevivência nessa cidade singular. Se Lagos tivesse comparação, a imagem mais próxima seria a de um formigueiro humano. Em geral carregando alguma coisa, seus 15 milhões de habitantes movem-se incessantemente, disputando o espaço exíguo, roubado da água pelos aterros, na densidade de 4.193 habitantes por quilômetro quadrado.
Apesar de 40% de sua área estar coberta pela lagoa, rios e pântanos – o que lhe valeu o nome, dado pelos portugueses -, água tratada e encanada chega, segundo dados oficiais, a apenas 6,39 milhões de pessoas (42,6% da população). Embora a Nigéria seja o sétimo maior produtor entre os membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) e goze de notável potencial hidrelétrico, a eletricidade funciona algumas horas por dia.
A demanda é de 6 mil megawatts e a oferta, de 1 mil. Pelo menos metade da atividade econômica é informal. Daí o leva-e-traz incessante: de galões de água, de querosene para iluminar e cozinhar e de todo tipo de produtos vendidos na rua, nos colossais engarrafamentos da cidade de 1 milhão de veículos e praticamente nenhum semáforo (os poucos existentes vivem desligados).
A água é um problema – e negócio – antigo. Em Lafiaji, o bairro dos escravos libertos que voltaram do Brasil no século 19, ainda está a casa de Cândido Rocha, que furou um poço em seu quintal e ficou rico vendendo água. A história foi celebrizada no romance A Casa da Água, de Antonio Olinto, adido cultural em Lagos nos anos 1960. Hoje, a cidade está repleta de poços artesianos comerciais, aonde os vendedores de água – profissão comum – vão se abastecer.
Ao lado de seu carro de mão que comporta 10 galões de 25 litros, Aruna Anabowo conta que paga 20 nairas (R$ 0,26) por recipiente, e o vende nas ruas por 40 a 50 nairas (R$ 0,54 a R$ 0,66), ganhando entre 300 e 400 (R$ 4,05 a R$ 5,40) por dia. Como Anabowo, pelo menos 20 pessoas vão todos os dias comprar água no poço, segundo o seu dono, Aloka Abu Bakar. A maioria faz mais de uma viagem e ele enche entre 40 e 45 carretas como a de Anabowo por dia.
Mas não é só água que se vende nas ruas. Eis a lista compilada num engarrafamento, pela ordem de aparição: verduras para ogu (molho tradicional), cartões de telefone, tábua de passar roupa, gravatas, refrigerantes, quitutes, estabilizadores de voltagem (que varia muito entre um blecaute e outro), frutas, jornais, rodelas de banana fritas, estilingues, salada de fruta cozinhando ao sol de 38 graus, CDs, cuecas, camisetas, teclado de computador, kits para cortar as unhas e fazer a barba, DVDs do filme O Anão Desaparecido (vendidos por anões que batem no vidro do carro e se dizem os protagonistas), vestidos, sapatos, bichos de pelúcia e controles remotos. As ruas de Lagos equivalem a um shopping center drive-thru.
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